Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, março 27, 2014

Volta ao lar Cora Rónai

Volta ao lar - Jornal O Globo


O Globo

A colunista escreve às quintas-feiras e aos sábados

O Brasil não está preparado nem para receber brasileiros, quem dirá turistas. Eu também tenho pena de quem vem para a Copa

Dizem que viajar é ótimo, mas voltar para casa é melhor. Depende. Se "casa" é o Rio de Janeiro, talvez melhor mesmo seja ficar voando em círculos sobre a cidade, eternamente, apenas imaginando as maravilhas lá de baixo, sem precisar encarar a realidade. Que, para mim, voltando de maravilhosas férias no Marrocos, começou na segunda-feira, bem cedo, assim que saí do avião, já na fila dos passaportes do indefectível Galeão — o pior aeroporto do planeta, sem exceção.
Depois de atender a meia dúzia de pessoas, duas dos quatro atendentes juntaram as suas tralhas e deram o expediente por encerrado, deixando as filas em frente aos seus guichês em suspenso. Nenhuma teve a cortesia de dizer nada, nem até logo, quanto mais explicar que estava na hora da mudança de turno e que logo outros atendentes assumiriam os seus lugares. Esperar cinco minutos pelos outros funcionários, para não deixar o público na mão, nem pensar.
Rebelião entre os passageiros:
— E este é o país da Copa!
— Este é um país de merda, isso sim!
— Como é que é? Ninguém vai nos atender?
— O público que se dane, é isso?!
Muitos minutos depois dois homens apareceram e ocuparam os lugares das mulheres. Tudo sem que uma palavra de explicação nos tivesse sido dada, como se simplesmente não estivéssemos lá, meia centena de passageiros exaustos e exasperados.
Eu era a primeira da fila.
Quando cheguei ao guichê, o funcionário me fez uma pergunta tão baixo, mas tão baixo, que tive que pedir que a repetisse três vezes para que pudesse entender. O que ele queria saber é se eu havia registrado o incidente, provavelmente porque me viu de celular na mão.
Respondi que não, na cara dura; mas registrei, sim. Aqui estão as minhas palavras e a descrição fiel do que aconteceu. Firme-se o registro, dou fé. Tenho fotos das cabines vazias como complemento. Devia ter filmado, mas meu instinto ainda é fotografar e anotar mentalmente, quando não posso fazê-lo por escrito.
Depois disso, banheiros imundos — por culpa também dos passageiros, no caso passageiras, incapazes de jogar toalhas usadas no lixo. E completamente inadequados a uma estação de viagem. Até nas ferroviárias mais remotas do Marrocos os arquitetos sabem que passageiros precisam entrar nas cabines dos sanitários com a bagagem de mão; no Galeão, não. É preciso muita ginástica e logística para entrar nas cabines com uma mala de bordo normal e, ao mesmo tempo, conseguir fechar a porta.
O Tax Free é aquela quitanda lastimável que todos conhecemos, e que envergonharia a rodoviária de Assunção.
Na área dos táxis, continua a abordagem de piratas e de canalhas variados. Lá fora, duas filas de amarelinhos. A primeira, cheia de gente, não tem táxi nenhum. A outra, numa segunda pista, está cheia de táxis das cooperativas do aeroporto, mas não anda. Tem vários táxis parados, vazios; outros táxis vêm por fora, param em fila tripla, pegam passageiros do fim da fila, uma zorra absoluta.
Alguém nos diz que os motoristas daqueles táxis "oficiais" parados estão lá dentro, esperando passageiros. Devem ser os bandidos que estavam me pedindo R$ 100 para vir até a Lagoa. Não há um único guarda ou funcionário para pôr ordem no caos ou para dar informações aos passageiros. Assim como no guichê dos passaportes, o clima da fila é de revolta.
— Que país nojento esse em que a gente vive!
— Muito azar nascer brasileiro!
— Que aeroporto de merda, que bando de ladrões, que bosta tudo isso!
— Tenho pena dos turistas que vêm para a Copa!
Antigamente, quando eu ouvia pessoas falando assim, entrava na conversa com jeitinho e tentava relativizar as coisas com um dos clássicos "Em compensação, lá fora..." Dessa vez ouvi calada. Não tenho mais argumentos. Depois de uma hora de fila, depois de tentar a sorte na primeira e na segunda pistas, sem ter ideia do que acontecia numa ou noutra, depois de testemunhar taxistas pegando passageiros fora da ordem e combinando preço fora do relógio, joguei a toalha. Peguei um táxi alternativo, por assim dizer — ou "executivo", como gostam de dizer os hotéis —, que me ofereceu a corrida por R$ 60, preço justo para o percurso. No caminho, ele me contou que aquela cena de faroeste está acontecendo todo santo dia. Eu adoro o meu país, eu amo a minha cidade, mas é dose voltar de viagem e encarar uma realidade tão selvagem. O Brasil não está preparado nem para receber brasileiros, quem dirá turistas. Eu também tenho pena de quem vem para a Copa. Muita pena.
Mas tenho mais pena ainda de nós. Eles vêm mas voltam, para países que, em sua maioria, estão progredindo com o passar dos anos; nós, por outro lado, continuamos aqui, num país cada vez mais hostil, que conseguiu a proeza de passar da barbárie à decadência sem atravessar qualquer período de civilização.
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Ainda tenho muita coisa para contar sobre o Marrocos, um dos lugares mais interessantes que já visitei; volto ao assunto na semana que vem. Peço desculpas pela interrupção da programação normal, mas eu precisava desabafar.

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