Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 03, 2013

Apartheid eleitoral - EDITORIAL O ESTADÃO


O ESTADO DE S. PAULO - 03/11
A Comissão de Constituição e Jus­tiça (CCJ) da Câma­ra dos Deputados admitiu - ou seja, considerou consti­tucional - um proje­to de emenda à Car­ta que reserva para candidatos ne­gros entre 20% e 50% das cadeiras da Casa, bem como das 27 Assembleias Legislativas do País e da Câmara Le­gislativa do Distrito Federal. A pro­posta conflita claramente com o prin­cípio democrático da indiferenciação dos detentores de mandatos parla­mentares: eles só se distinguem, aos olhos da legislação, por seus Estados e partidos.De autoria do deputado Luiz Alber­to, do PT da Bahia, que lidera a Fren­te Parlamentar Mista pela Igualdade Racial, o projeto pretende, nas suas palavras, "dar um choque de demo­cracia no Legislativo". Ele alega que
não basta que as legendas abram mais espaço a candidaturas de pre­tos e pardos: seria mais difícil para eles levantar recursos que lhes permi­tam concorrer de igual para igual com os demais competidores - embo­ra representem quase a metade da população.
De fato, apenas 8,4% dos 513 depu­tados federais eleitos em 2010 são ne­gros ou pardos; nas Assembleias estaduais, a proporção ainda é menor (3,7% dos 1.059 deputados). Mas, se­ja lá como se explique isso, a compo­sição dos órgãos de representação po­lítica no Brasil não obedece, nem te­ria por que obedecer, a critérios gru­pais ou corporativos, como se fôsse­mos, no primeiro caso, uma confede­ração de etnias e, no segundo, uma versão aggiornata da Itália fascista.
A premissa da "democratização" também poderia servir à abertura de uma via expressa para que o contin­gente de parlamentares mulheres corresponda ao peso demográfico da população feminina (101,7 milhões em 201 milhões de brasileiros). Mas, ao que se saiba, nenhuma organização feminista defende que o eleitor, depois de escolher nas listas partidá­rias abertas o seu candidato, ou candidata, a deputado, vote uma segun­da vez em um nome de uma lista se­parada de candidatas, a fim de que ocupem de 1/5 à metade das cadeiras em disputa.
Essa, afinal, é a esdrúxula fórmula apresentada pelo deputado Luiz Al­berto, que valeria por cinco legislatu­ras (20 anos), prorrogáveis por outro tanto, a contar da promulgação da emenda constitucional. Antes de cumprir o rito da dupla votação com quórum qualificado nas duas Casas do Congresso, a proposta terá de ser aprovada numa comissão especial da Câmara, na qual se espera que a maioria atente ao que o texto embu­te: a racialização da vida política brasileira. O racialismo sustenta que um afrodescendente não é um brasileiro negro, mas um negro brasileiro - a cor, portanto, prevalecendo sobre a nacionalidade.
Trata-se de uma ideologia trans­plantada dos Estados Unidos. Lá e cá, o opróbrio da escravidão marcou a história, as relações sociais e a men­talidade de sucessivas gerações. Mas há duas distinções gritantes entre os dois países. Uma é que, abolida a ser­vidão, o Brasil jamais conheceu a dis­criminação racial instituída em lei - fossem quais fossem o grau e a ex­pressão do preconceito de brasilei­ros brancos em relação aos descendentes de escravos. Já em boa parte dos EUA, os negros continuaram sen­do cidadãos de segunda classe, de uma forma ou de outra, até o adven­to da Lei de Direitos Civis, em 1964.
A segunda e não menos crucial dife­rença é que a miscigenação criou en­tre nós uma sociedade em que, gra­ças à concupiscente cultura colonial, a maioria da população tem "um pé na cozinha", como diz de si Fernan­do Henrique Cardoso. Nos Estados Unidos, em suma, há mais america­nos pretos do que pardos; no Brasil, mais pardos do que pretos. Daí ter se desenvolvido entre os afrodescendentes do Norte a discriminação às avessas, em má hora compartilhada aqui por alas do movimento negro e desavisados adeptos do "politica­mente correto".
O padrão brasileiro de representa­ção política implora por mudanças que tornem mais efetivo o voto po­pular, diminuindo a distância entre a vontade do eleitor e a configura­ção dos corpos eletivos. Mas em na­da contribui para isso - ao contrário - a descabida proposta da reserva de vagas para pretos e pardos nas Ca­sas Legislativas do País, a serem preenchidas por uma modalidade de apartheid eleitoral.


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