Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 16, 2012

Um pavio de 14 minutos - SÉRGIO AUGUSTO

O ESTADÃO - 16/09


'Inocência dos Muçulmanos', o polêmico filme-ofensa a Maomé, foi mero pretexto para ações em adiantado estado de gestação



Inocência dos Muçulmanos já entrou para a história do cinema como o filme mais nefasto até hoje produzido. Nem Ramona, casual "responsável" por uma série de incêndios em salas de exibição americanas no século passado, nem o último Batman, que no Colorado deixou um saldo do 12 mortos e 58 feridos, causaram tanto estrago quanto o filmeco contra Maomé que essa semana tomou conta do noticiário internacional.

Por sua causa, já mataram um diplomata e três funcionários do consulado dos Estados Unidos em Benghazi (Líbia), invadiu-se a embaixada americana no Cairo e atos de vandalismo e extrema violência foram cometidos no Egito, no Iêmen, no Sudão, no Líbano, na Nigéria, na Tunísia e em Bangladesh, comprometendo o que ainda resta da Primavera Árabe e da ascendência diplomática da Casa Branca no Oriente Médio. Além de expor a um revertério a campanha reeleitoral de Obama, principal fiador do fim do jihadismo. Há 33 anos uma invasão da embaixada americana em Teerã, insuflada pelo aiatolá Khomeini, custou a reeleição de Jimmy Carter.

Mais um vídeo do que propriamente um filme, de que se pretende trailer, Inocência dos Muçulmanos nem precisou chegar à tela grande para cumprir seus objetivos políticos. Bastou-lhe o circuito gratuito e universal do YouTube. Mero pretexto para ações em adiantado estado de gestação, sem a colaboração do fanatismo religioso e de um ressentimento acumulado contra os americanos e Israel na região, o tosco agitprop anti-islâmico, um pavio de ódio medindo apenas 14 minutos, não teria provocado tantos distúrbios.

Jesus Cristo foi ridicularizado por Luis Buñuel e Salvador Dalí em L'Âge d'Or, gozado pelos Monty Python e incomodamente humanizado por Martin Scorsese, mas nenhuma dessas supostas blasfêmias cinematográficas incitou os cristãos mais fervorosos a represálias violentas. No tempo do cinema mudo, a figura de Cristo era sempre respeitosamente mostrada de costas ou apenas vista de longe, seu rosto um mistério, um tabu, como o de Maomé jamais deixou de ser. Mas nem se tratasse o profeta islâmico de forma reverente Inocência dos Muçulmanos seria visto com indulgência pelos iconofóbicos filhos de Alá.

Além de feições humanas, Maomé ganhou atributos infamantes. Retrataram-no como um monstro messiânico, como um bastardo corroído pela cobiça, mulherengo, pedófilo, sanguinário, e seus seguidores como um bando de retardados a serviço de uma religião "inerentemente opressiva". Se a intenção primordial era vender o peixe de que os seguidores do Islã são intolerantes e agressivos, Sam Bacile, o autor oficial da patranha, não errou o alvo.

Sam Bacile, desmascarou-se em menos de dois dias, é o pseudônimo de um californiano de 55 anos chamado Nakoula Basseley Nakoula. Não é um agente imobiliário israelense, estabelecido em Los Angeles, como se acreditava que Bacile fosse, mas um cristão copta, visceralmente anti-islâmico, julgado e preso por várias falcatruas financeiras. No set de filmagem, apresentava-se como egípcio e falava árabe, conforme testemunhos recolhidos por dois incansáveis repórteres da Associated Press, Gillian Flaccus e Stephen Braun, responsáveis pelo desvendamento da misteriosa encrenca.

Ainda oculto pelo nome falso, Nakoula conversara por telefone com a reportagem do Wall Street Journal, que engoliu a cascata de que ele estava foragido. Ninguém do ramo imobiliário e da indústria de cinema ouvira falar em "Sam Bacile"; o serviço secreto de Israel, tampouco. Suspeitou-se, por algumas horas, que por trás da enigmática figura estivesse o pastor evangélico Terry Jones (aquele que há dois anos andou queimando exemplares do Alcorão e, meses atrás, prometeu exibir o trailer de Inocência dos Muçulmanos em seu templo, em Gainesville, na Flórida) ou o islamofóbico histórico Morris Sadek, copta egípcio radicado na Califórnia.

As pistas ainda estavam desencontradas quando surgiu uma nova incógnita: Steve Klein, securitário de Hemer (Califórnia) e veterano da Guerra do Vietnã conhecido no Estado por suas manifestações contra o Islã e o aborto em escolas, agremiações e até pelo microfone amigo de uma rádio cristã do Oriente Médio. Klein apresentou-se ao site da revista The Atlantic como consultor de "Bacile" na produção do filme, e confirmou: "Não é seu verdadeiro nome, nem ele é israelense". Revelou ainda ter-lhe lembrado do que aconteceu com o holandês Theo van Gogh, assassinado por um militante islâmico em 2004 por causa de um filme sobre abusos do Islã.

Pelo número do telefone de "Sam Bacile", os dois citados repórteres da AP chegaram a Nakoula, perto de Los Angeles, e descobriram que ele não se limitara a dar apoio logístico à produção do filme. Nakoula havia produzido e dirigido Inocência dos Muçulmanos, filmado nos arredores de Los Angeles durante três meses no verão de 2011, com 59 atores e 45 técnicos, ao custo de US$ 5 milhões, que teriam sido doados por mais de uma centena de judeus americanos.

A atriz Cindy Lee Garcia, identificada e localizada através de uma agência de casting de Hollywood, confirmou parte da história. O filme, intitulado Desert Warriors (Guerreiros do Deserto) durante as filmagens, não tinha nenhuma conotação religiosa, segundo ela, que confessou ter ficado chocada ao constatar, no YouTube, que haviam dublado suas falas em inglês para o árabe e enfiado Maomé numa intriga cujo vilão não se chamava Muhammad, mas "Master George", um celerado sequestrador de crianças e estuprador de mulheres.

Filmes com mensagens anti-islâmicas não são uma raridade na América pós-11 de Setembro. A Clarion Foundation, criada pelo rabino canadense Raphael Shore, especializou-se nesse tipo de documentiras doutrinárias e vai de vento em popa. Estreou em alto estilo com Obsession, paranoico alerta sobre a guerra que os muçulmanos radicais deflagrariam contra o Ocidente caso Obama se elegesse presidente, distribuído gratuitamente em milhares de domicílios durante a campanha presidencial de 2008.

Anders Breivik, o recém-condenado terrorista de Oslo, menciona Obsession uma dezenas de vezes em seu manifesto islamofóbico. Voltamos às Cruzadas.

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