Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 18, 2012

Tabelinha entre a glória e a corrupção - HANS ULRICH GUMBRECHT

O ESTADÃO - 18/03/12

Brasileiros agem como se o cartola fosse o câncer, não apenas um
sintoma, e o Brasil continuasse a ser o melhor do mundo no futebol


Tornei-me um fã dos esportes na Copa do Mundo de 1954; tornei-me
cidadão americano 12 anos atrás; tenho vivido e ganhado a vida na
Califórnia desde 1989; faço visitas de trabalho ao Brasil pelo menos
uma vez por ano, desde 1977 - e não posso deixar de amar o País e
enxergá-lo tanto de dentro como de fora. Por todos esses motivos,
senti uma felicidade e um alívio natural quando li, no começo da
semana, que Ricardo Teixeira tinha renunciado à presidência da
Confederação Brasileira de Futebol e do comitê organizador da Copa do
Mundo de 2014. Mas, de onde exatamente veio minha alegria e quais são
as esperanças para o futuro contidas nesse sentimento?

Houve uma época, desde meados do século passado, em que o talento
futebolístico acumulado no Brasil era tão avassalador que o sucesso,
num nível internacional, parecia inevitável. Depois que o País ganhou
seu primeiro título, em 1958, ninguém questionava se seria capaz de
repetir o feito - a pergunta era, caso isso não acontecesse, o que
teria dado tão errado. Poder-se-ia culpar técnicos incompetentes,
tensões entre diferentes grupos de jogadores, falta de sorte ou
problemas na arbitragem. Nunca, porém, se questionava que o Brasil
fosse o número um no futebol, porque sempre houve uma maioria de
brasileiros entre os dez melhores jogadores do mundo. Ao longo de
todas essas décadas, o Brasil pareceu ser um gigante adormecido do
ponto de vista político e econômico. Tratava-se de um país com
recursos naturais inesgotáveis e dono de um potencial profissional e
cultural igualmente ilimitado, mas também - e acima de tudo - um país
que nunca foi capaz de corresponder às expectativas por ter se
acostumado tanto à corrupção nos níveis mais elevados de sua
sociedade. Pelos melhores e piores motivos, a glória no futebol e a
corrupção na política estiveram visivelmente, intimamente e
estranhamente associadas uma à outra.

A partir dos anos 90, as coisas começaram a mudar em ambas as
dimensões. Sob o governo de Lula, e provavelmente ao menos em parte
graças ao seu talento político específico, o Brasil se tornou uma
potência econômica mundial e seu potencial de exercer influência
internacional cresceu constantemente. Os brasileiros têm desfrutado
dessa história de sucesso (cuja verdadeira origem são eles mesmos, é
claro) como se estivessem num conto de fadas - e seu comportamento,
digno de conto de fadas, consiste em diversas camadas de cegueira.
Como fazia seu ex-presidente, a maioria dos brasileiros age como se a
corrupção não existisse (queixa-se apenas quando ela os prejudica
pessoalmente). Como seu ex-presidente, eles seguem cultivando a
inocência moral de um país de terceiro mundo (inocência que nunca
existiu e, nos dias de hoje, tornou-se bastante irresponsável); e
parece que uma grande maioria de brasileiros também partilha da
cegueira de seu ex-presidente em relação à realidade contemporânea do
futebol no País. Essa maioria não gosta de admitir que o Brasil deixou
de ser o grande celeiro natural dos maiores talentos futebolísticos
mundiais; nem de reconhecer que, na Copa de 2010, sua seleção
simplesmente conquistou a posição merecida, num ponto entre a quinta e
a oitava colocação.

Os brasileiros de Lula querem tudo: a riqueza e a influência
internacional em perpétuo crescimento, a inocência e a glória
futebolística. Precisam de tempo para se acostumar à ideia de que
riqueza e influência trazem consigo novas responsabilidades e, talvez,
sua situação atual tenha alterado o status cultural do futebol para o
País. Hoje, o futebol brasileiro não é mais a única dimensão na qual o
País consegue brilhar no palco internacional e, por outro lado, passou
a ser a única na qual os brasileiros não estão mais dispostos a
tolerar corrupção. Ricardo Teixeira se tornou a encarnação do pior do
Brasil de ontem e de hoje, a soma daquilo que restou de uma antiga
tradição de corrupção e do que parece ser o início de uma mediocridade
futebolística internacional. É por isso que todos no Brasil, e fora
dele, gostavam tanto de odiá-lo - e é também por isso que esse ódio é
tão redundante.

Mas Romário, cujos lampejos de cáustico brilhantismo político às vezes
se comparam a seu talento com a bola, tem razão - nada vai mudar se os
brasileiros perderem seu tempo com metáforas de cânceres extirpados
com sucesso em vez de enfrentarem a realidade nacional. A corrupção
persiste na Confederação Brasileira de Futebol (e poucos cidadãos a
enxergam e denunciam com a clareza demonstrada pela presidente Dilma -
provavelmente pelo vago medo de que assumir tal posição vá dificultar
sua pequena corrupção pessoal no dia a dia). O estado dos preparativos
para a Copa do Mundo de futebol dá motivos de sobra para temer que o
País possa viver um momento de constrangimento nacional. Todos os
brasileiros sabem que escolher Ronaldo como o "rosto da Copa do Mundo
de 2014" é um sintoma da tendência nacional de tornar os problemas
invisíveis: ele nunca foi um jogador de talento histórico, apesar do
que dizem certas estatísticas superficiais, e sua personalidade não o
qualifica como alguém realmente capaz de representar o potencial de um
Brasil mudado.

Pode-se dizer que o que estou escrevendo é a opinião de um estrangeiro
demasiadamente pessimista (talvez até invejoso). Mas os brasileiros
agem como se o rechonchudo Ronaldo fosse um verdadeiro campeão, como
se Teixeira fosse um tecido cancerígeno e não apenas um sintoma e como
se o Brasil continuasse a ocupar a posição inquestionável de melhor do
mundo no futebol - e como se uma Copa respeitável pudesse ocorrer a
partir do nada. Há muito em jogo para o Brasil em 2014, não apenas nos
campos de futebol, e o único sinal de esperança visto até agora foi o
ato falho do sucessor de Teixeira, que disse quanto estava ansioso
para trabalhar com - Romário.
/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
HANS ULRICH GUMBRECHT É PROFESSOR DE LITERATURA NA UNIVERSIDADE DE
STANFORD E AUTOR DE ELOGIO DA BELEZA ATLÉTICA (CIA. DAS LETRAS)

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