Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 23, 2011

A nova Líbia MÍRIAM LEITÃO


O GLOBO - 23/08/11

Os líbios agora passarão a construir a nova era pós-Kadafi. Terão a vantagem de ter apoio internacional. A grande pergunta é: a Líbia será uma democracia? O politólogo Eduardo Viola, da UnB, define como semidemocracia o que poderá ser instalado em Trípoli. O Brasil errou no caso da Líbia e ontem às pressas tentava consertar. Erra também na Síria.

O que fazer diante de um ditador que promove um banho de sangue para manter seu regime? O Brasil se absteve no Conselho de Segurança da ONU à declaração de área de exclusão aérea na Líbia, no dia 17 de março. Há 15 dias, em entrevista ao Globo , o ministro Antonio Patriota disse que não reconheceria o Conselho Nacional de Transição (CNT) como governo líbio - medida que havia sido tomada por Estados Unidos, União Europeia e vários países árabes - porque os rebeldes controlavam apenas uma parte do país. Ontem, na undécima hora, é que reconheceu o CNT. Isso é que é incapacidade de ver a tendência dos acontecimentos. A mesma contramão vem sendo tomada em relação à Síria de Bashar al-Assad, mesmo após o regime ter assassinado duas mil pessoas e depois de até a Arábia Saudita ter retirado seu embaixador do país.

O novo governo líbio terá apoio das maiores economias e dos bancos internacionais e mercado para o seu petróleo. Começará a difícil tarefa de construir instituições democráticas num país tribal. Eles divulgaram dias atrás uma constituição provisória. Viola acha que os rebeldes começarão a construir alguma forma de representação política, mas acredita que vai demorar até que se instale um governo com as características de uma democracia. Estavam certos os países que desde o começo disseram que era preciso fortalecer os rebeldes diante da reação sangrenta de Kadafi e seus filhos. A cooperação deve continuar agora para que os líbios reorganizem o país, após o fim de uma ditadura de 42 anos. Claro que há dúvidas sobre o futuro da Líbia, se o CNT será capaz de unir as tribos e fazer a transição para a democracia. Mas essa dúvida não era justificativa para manter Kadafi e sua dinastia no poder.

A Líbia tem vários trunfos para se reerguer: tem a maior reserva de petróleo da África, maior que a da Nigéria, é capaz de produzir até 1,8 milhão de barris/dia, como fez em 2010. No começo do conflito, em fevereiro, estava produzindo 1,6 milhão e passou a produzir apenas 100 mil. Apesar dos seis meses de luta, o país preservou sua estrutura de escoamento do produto para a Europa. A Itália é o maior comprador. Compra 28% do petróleo que a Líbia vende. O país tem US$ 150 bilhões de reservas cambiais. Mas antes, o novo governo terá de restabelecer a ordem, os serviços públicos e instalar um governo minimamente operacional. A normalização econômica e política pode demorar um ano.

O que a comunidade internacional não podia era assistir de braços cruzados ao massacre dos líbios, como não pode assistir ao massacre dos sírios.

É sempre preferível a solução negociada, mas o ditador nunca quis negociação. As hesitações, manifestações ingênuas e abstenções do Brasil, neste período em que ocupa temporariamente uma cadeira no Conselho de Segurança, pode levar o mundo a se perguntar para que mesmo o Brasil quer uma cadeira permanente.

Na Síria, o caminho para a democracia parece ainda mais longo. "A alta oficialidade síria tem participado diretamente do massacre de Bashar Assad. Eles sabem que serão julgados com o mesmo rigor que o ditador. Tendem a manter a radicalização ", acredita Viola.

Os episódios seguidos no Norte da África não repetem o mesmo roteiro. Em cada país, é diferente. Mas o vendaval continua. Em janeiro, caiu Ben Ali, na Tunísia; em fevereiro, caiu Hosni Mubarak, no Egito. Em junho, caiu Abdullah Saleh, no Iêmen. Em agosto, é a vez de Kadafi. Bashar al-Assad é o próximo da lista.

Nos casos da Líbia e Síria, os mais difíceis, o governo da presidente Dilma tem errado muito. Houve para nós uma breve primavera: a ideia de que direitos humanos seriam um dos princípios da diplomacia, mas essa esperança se esfumaçou rapidamente.

"A expectativa que se formou era de que a presidente Dilma, por sua história de vida e pelas primeiras declarações, faria uma correção nos rumos da política externa dos últimos anos, em que houve fatos como as declarações do presidente Lula contra as manifestações em Teerã. Mas as posições do Brasil em relação à Síria, quando Bashar fazia um banho de sangue no país, mostraram que não haverá mudanças", disse Viola.

Em Teerã, nas eleições de 2009, as manifestações acusando Mahmoud Ahmadinejad de fraude foram definidas por Lula como "choro de perdedor". Elas foram violentamente reprimidas, claramente fraudadas. No primeiro governo, Lula visitou Muammar Kadafi. O cerimonial imposto pelo governo líbio incluiu homenagens ao pai de Kadafi e lições de geopolítica dadas pelo ditador na sua tenda cenográfica. Foi patético. Foi desse passado que o país sonhou se livrar. Os primeiros sinais dados pelo ministro Antonio Patriota foram encorajadores, mas agora já se sabe que o Itamaraty continuará no mesmo equívoco.

O Brasil deve ter relações políticas e comerciais com o maior número de países do mundo; de preferência com todos. Isso é diferente de gestos de fortalecimento de regimes que, em seu ocaso, usam o aparelho de Estado contra seus opositores com a ferocidade com que foi feito por Kadafi e Bashar al-Assad. É lamentável que o Itamaraty tenha perdido a capacidade de ver a diferença entre manter relações com os países e apoiar regimes indefensáveis.

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