Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 16, 2011

José Nêumanne A caixa-preta da Operação Satiagraha

O Estado de S. Paulo - 16/03/2011

São coincidentes duas tentativas, em instâncias judiciais diferentes,
de ocultar a atuação de 76 espiões da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) que passaram por cima da lei e da hierarquia
funcional na Operação Satiagraha, na qual a Polícia Federal (PF) se
propôs a investigar acusações contra o gestor de fundos Daniel Dantas
e outros.

O primeiro movimento desse balé de sombras ocorre no âmbito da Justiça
Federal paulista. Com base em telefonemas gravados pelos citados
agentes da Abin requisitados pelo delegado Protógenes Queiroz, o
titular da 7.ª Vara Federal Criminal, Ali Mazloum, produziu provas da
ilegalidade da atuação desses "arapongas" no inquérito na Polícia
Federal. Tais provas incriminam Luiz Roberto Demarco, criador da
"lojinha virtual" do PT usada para arrecadação de fundos da campanha
de Lula para presidente em 1998. Conterrâneo e amigo de longa data de
Luiz Gushiken, coordenador daquela campanha, Demarco tinha sido
demitido de uma diretoria da empresa gerida por Dantas, passando, em
seguida, a vender serviços aos adversários do gestor do Opportunity,
entre eles a Telecom Italia.

A consulta dos textos que reproduzem alguns dos telefonemas gravados
permitiu ao juiz provar intensa comunicação entre Demarco, Protógenes,
jornalistas e os dirigentes da Abin Paulo Lacerda e Paulo Fortunato.
Mas habeas corpus impetrado por esses réus retirou da 7.ª Vara todo o
acervo de informações produzido de forma ilegal por essa associação
entre a PF e a Abin e o redistribuiu para o juiz Toru Yamamoto, da 3.ª
Vara. Isso foi conseguido com ajuda do Ministério Público Federal, que
também se empenha em não divulgar as informações sobre o que tanto
conversaram pelo telefone o delegado federal, os chefões da agência de
"inteligência" e Demarco, que, de acordo com o repórter Raimundo
Rodrigues Pereira, no livro O Escândalo Daniel Dantas: Duas
Investigações (2010), teria recebido US$ 7,5 milhões do sócio
americano - o Citi - hostil ao ex-patrão, além de vultosa remuneração
de outro sócio hostil, a Telecom Italia, para agenciar a Polícia
Federal.

Em novembro, Mazloum proibiu Protógenes, deputado federal graças às
sobras de votos do palhaço Tiririca, de exercer cargos públicos e
eletivos, alegando que ele teria recorrido a métodos nocivos ao Estado
Democrático de Direito na investigação. E acusou o réu de se haver
aproveitado da notoriedade conseguida mercê da Operação Satiagraha
para se eleger. Reza sua sentença: "O objetivo eleiçoeiro do acusado
Protógenes é indubitável, cabendo assinalar que nos quatro aparelhos
celulares apreendidos em seu poder, por ordem deste Juízo,
verificaram-se nas agendas das respectivas memórias diversos contatos
de políticos, partidos e jornalistas, circunstâncias que evidenciam
seu intento midiático e político".

O desembargador fluminense Adilson Vieira Macabu usou o mesmo
argumento no voto que deu na 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), na condição de relator do julgamento de habeas corpus impetrado
por Daniel Dantas contra a forma como a PF conduziu as investigações
na Operação Satiagraha, da qual o gestor de fundos foi o principal
réu. A partir do pressuposto genérico de que o inquérito que deu
origem à ação contém vícios que "contaminam" todo o processo, o voto
do relator também associa o espetáculo produzido pelo delegado com sua
posterior campanha eleitoral e sua atuação ostensiva como assessor
informal da candidata petista à Presidência Dilma Rousseff nos debates
contra o tucano José Serra na campanha de 2010.

Macabu deixou claro, em seu voto, que não se trata de tornar impune
mais um caso rumoroso, de vez que as suspeitas de corrupção e lavagem
de dinheiro apuradas pela PF continuam e deverão ser sempre passíveis
de investigação. Convém fazer tal observação para que não paire no ar
nenhuma suspeita de parcialidade: não se trata de esconder um lado
para proteger o outro nem vice-versa. O Estado Democrático de Direito
exige a investigação justa e imparcial dos fatos dentro do escopo da
lei. Mas também não pode compactuar com a flagrante ilegalidade de um
inquérito policial feito com a colaboração irregular da Abin, de cujas
atribuições legais de assessoria à Presidência da República não consta
a participação de seus agentes em investigações que cabem a policiais
federais.

O ministro Napoleão Nunes Maia Filho acompanhou o relator. Mas, antes
de Laurita Vaz e Jorge Mussi votarem, Gilson Dipp, que conhece o
escândalo há três anos, pediu vista. Em 2008, Felipe Patury publicou
na coluna Holofote, da Veja, encontro de Dipp com o juiz do caso,
Fausto De Sanctis. Conforme o colunista, ao comentar o conflito com o
ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, De
Sanctis "garantiu a Dipp que agiu de boa-fé, mas admite que pode ter
sido ludibriado pelos policiais ou pelo Ministério Público na
preparação da operação".

O Judiciário precisa dar um basta no uso de operações policiais como
produto a serviço de interesses privados. Para tanto deve permitir a
abertura da caixa-preta da Operação Satiagraha. Mais do que isso: urge
que sejam reafirmadas as bases do Estado de Direito garantindo o
cumprimento das leis e a independência dos magistrados, pois, como
denunciou o então presidente do STF, Gilmar Mendes, em carta ao
ex-ministro da Justiça Tarso Genro, é inaceitável "a tentativa de
estabelecer estrutura de intimidação e atemorização, sobretudo por
meio de sórdidas acusações nos meios de comunicação, com a finalidade
de submeter magistrados aos propósitos de policiais federais
desgarrados dos princípios que regem as nobres funções que lhes são
confiadas". O citado Ali Mazloum também escreveu, em artigo publicado
nesta página no último dia 9: "um juiz que julga de acordo com o
noticiário da TV ou anda afinado com o "direito achado nas ruas" não
passa de um tartufo togado". Ou seja: cabe-lhe a missão nobre e
irrecusável de ser sempre um serviçal vigilante e incorruptível da lei
e combater quaisquer formas de injustiça.

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