Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 22, 2010

"O povo pensa que dossiê é um doce"
ARNALDO JABOR


O GLOBO - 22/06/10


Não me esqueço de um ataque de riso, muitos anos atrás, quando ouvi a autocrítica de um alto dirigente do PC da China, durante a Revolução Cultural. Quem foi? Lin Piao? Não me lembro. A "autocrítica" era um dos velhos hábitos comunas, uma espécie de confissão católico-vermelha, só que aos berros diante das massas. E o dirigente se criticou: "Eu sou um cão imperialista, eu sou o verme dos arrozais da China, eu sou a vergonha do comandante Mao...".
Queria de volta as autocríticas do tempo de Mao. Queria ver o Marco Aurélio Garcia, por exemplo, bater no peito se confessando: "Eu sou a praga do cerrado, eu sou um bolchevista fingindo de democrata. Acabei com o prestígio de Lula lá fora, beijando o Ahmadinejad, isolei o Brasil e provavelmente perderemos mais de US$ 3 bilhões em benefícios que os Estados Unidos nos davam para exportações, além da sobretaxa do etanol, que será mantida!".
Depois que conseguiram entrar no Estado, através do Lula, os velhos esquerdistas perderam a aura mística, a beleza romântica que tinham na clandestinidade que os santificava. Eu conheci muitos heróis, sonhando realmente com a revolução, mesmo que utópica, mas honestos, sacrificando-se, morrendo. O comunista romântico não vemos mais.
Hoje, eles não se consideram eleitos por uma democracia, mas guerreiros políticos que "tomaram" o poder. Vemos isso nos milhares de insultos no Twitter, e-mails e bloguinhos que espoucam na internet. Recebo centenas, como outros jornalistas. São apavorantes os bilhetes na web: ofensas e ameaças. Não há uma luta por ideais, mas uma resistência carregada de ódio e medo daqueles que podem, eventualmente, tirar seus privilégios: os "canalhas neoliberais"...
Esses quadrilheiros usurparam os melhores conceitos da verdadeira esquerda, que pensa o Brasil no mundo atual, uma esquerda reformada pelas crises internas e externas, que se conscientizou dos erros da agenda clássica. Eles injuriam e difamam o melhor pensamento de uma esquerda contemporânea, em nome de uma "verdade" deformada que teimam em manter.
Esse crime abstrato muitos intelectuais e artistas não veem, por temor ou ignorância. Falam de um lugar que seria da "esquerda", mas que é o lugar de baixos interesses pelegos, de boquinhas a defender - uma versão de socialismo decaída em populismo. Se dizem de esquerda, mas são de direita, para usar seus termos. Não só pilharam bilhões de reais de aparelhos do Estado, em chantagens com empresários, em fundos de pensão, em contratos falsos, mas roubaram também nossos mais generosos sentimentos. E não é só a mentira que é vergonhosa. É a arrogância com que mentem ao se apropriarem do controle da inflação e de todas as reformas que o governo anterior lhes deixou, que eles chamam de "herança maldita".
Não há mais "autocrítica". Hoje temos o desmentido. O "desmentido" é o arrependimento do "se colar, colou". Quando uma ação revolucionária dá "chabu", basta desmentir e ainda dizer que foi tudo invenção da vítima.
Assim foi o caso Celso Daniel, o caso dos "aloprados" de São Paulo, das cuecas, tudo. "Nunca antes" um partido tomou o poder no Brasil e montou um esquema assim, um plano secreto de "desapropriação" do Estado, para fundar um "outro Estado" ou para ficar 20 anos no poder.
E agora, no caso do "dossiê" contra o PSDB e Serra, mentem tranquilos: é a "mentira revolucionária". Lembro-me de Lula rindo do dossiê dos "aloprados", dizendo: "Deixa pra lá... o povo nem entende o que é dossiê... pensa que é doce de batata... de abóbora...".
Como não têm um programa moderno para o Brasil, a não ser o imaginário sarapatel de ideologias que vão de um leninismo mal lido, passando por um getulismo tardio, uma recauchutagem de JK fora de época, eles escondem sua incompetência se dedicando à parte "espiritual" da velha ideologia: controle, fiscalização, tutela, espionagem e censura.
Agora, estamos assistindo ao início da "porrada revolucionária", com os "militantes" atacando os "inimigos" do povo. É o zelo dos peões, dos pés de poeira, que se acham os guerreiros de uma missão bélica para impedir que os burgueses do PSDB ganhem as eleições (se aliam a Sarney e Collor e dizem que Serra e FHC, que passaram mais de uma década no exílio, são "fascistas neoliberais"... Pode?).
Os brutamontes da militância se acham imbuídos de uma missão sagrada: "Eu taquei um pé nos cornos daquele tucano filho de uma égua, esfreguei a cara dele no chão até ele gritar ‘Viva a Dilma!’ É isso que é golpe de esquerda, não é, companheiro?"
Outro feito dos bolchevo-pelegos no poder é a desmoralização do escândalo. As verdades e delitos aparecem, mas, por negaças, recursos políticos e protelações, o escândalo definha, entra em agonia e morre. Quantos já houve? Stalin apagava das fotos os membros do partido que ele expurgava; portanto, nunca existiram. Tudo é absolvido pela "mentira revolucionária", porque ela vem por uma "boa causa".
Quase todos esses cacoetes derivam de um sentimento: "Somos superiores". Quando eu era estudante, um dirigente do PC dizia sempre: "Não estamos com a doutrina certa? Então... é só aplicá-la". Essa "certeza superior" é encontradiça em homens-bomba, em bispos vermelhos. O autoritarismo e a truculência não são privilégio de fascistas.
A única revolução no Brasil seria o enxugamento de um Estado que come a nação, com gastos crescentes e que só tem para investir 1,5% do PIB. A única revolução seria administrativa, apontada para a educação e para as reformas institucionais, já que, graças a Deus, a macroeconomia herdada foi mantida e a economia mundial se dirige aos países emergentes.
O Brasil está pronto para decolar, se modernizar, e essa gente quer segurar o avião em nome de interesses de um patrimonialismo de Estado e de um socialismo morto que, em seu delírio, acham que virá. Como recomendou Stédile a seus "sem-terra": "Tenham filhos; eles vão conhecer o socialismo...".

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