Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, junho 07, 2010

O brasileiro sabe cuidar de sua vida? Carlos Alberto Sardenberg

O Estado de S. Paulo - 07/06/2010

Que tal a seguinte questão: as pessoas sabem cuidar de suas vidas ou
precisam sempre da proteção e do controle do Estado?
Antes que façam a objeção, observo: é claro que não haverá resposta
absoluta do tipo "eliminem o Estado" ou "suprimam as liberdades". Mas
no balanço a coisa se inclina, no Brasil, mais para uma suposta
proteção do Estado, que mais parece autoritarismo.
Tanto é assim que certas questões nem aparecem no debate político. Por
exemplo: o que é melhor, a gente pagar mais impostos para o governo
fornecer a escola pública ou pagar menos imposto e, com mais dinheiro
no bolso, escolher uma escola particular? Pagar imposto para o serviço
público de saúde ou ficar com mais dinheiro para pagar o plano de
saúde privado?
Reparem agora como a coisa aparece no cotidiano das pessoas. Os
medicamentos se dividem em dois grandes grupos, os que precisam de
prescrição médica e os que não precisam, sendo estes de venda livre
nas farmácias. Livre até certo ponto, pois a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, a Anvisa, tenta impor a regra pela qual os
medicamentos isentos não podem ficar expostos nas gôndolas, ao alcance
do consumidor. Em vez disso, deveriam ficar guardados atrás dos
balcões, de tal modo que o cidadão tenha que solicitá-los ao
balconista.
A Anvisa baixou resolução com essa norma, mas associações e redes de
farmácia a contestam na Justiça.
Além disso, algumas assembleias legislativas estaduais aprovaram leis
regulamentando o varejo nas farmácias e determinando que os
medicamentos isentos podem, sim, ficar nas gôndolas, sendo adquiridos
diretamente pelo consumidor. Pega e paga no caixa.
A situação, portanto, está indefinida nos tribunais e no Legislativo.
Mas o Conselho Federal de Farmácia, entidade dos farmacêuticos, que
apoia a resolução da Anvisa, pretende resolver a história com outra
manobra. Prepara uma resolução determinando que todos os medicamentos
isentos de prescrição médica só poderão ser vendidos com uma
prescrição farmacêutica.
Funcionaria assim: a pessoa entra na farmácia em busca de um
comprimido para dor de cabeça; é, então, atendida por um farmacêutico
que fará uma ficha de atendimento e, então, prescreverá o comprimido
que o cliente solicitou. Ou um outro, se julgar mais adequado. Nesse
caso, se a pessoa não quiser, que procure outra farmácia e outro
farmacêutico.
Haverá, portanto, uma espécie de consulta obrigatória, com o
farmacêutico, para a compra de qualquer medicamento, por mais simples
que seja. E isso tudo seria determinado por uma resolução do Conselho
Federal de Farmácia.
A Anvisa apoia essa proposta do conselho, pois é uma maneira de
contrabandear e ampliar aquela outra resolução. Pela norma da Anvisa,
o consumidor precisa pedir o medicamento ao balconista. Pelo conselho,
o consumidor vai precisar fazer uma ficha e obter a receita do
farmacêutico, mesmo para um medicamento que ele mesmo, consumidor,
escolheu e que normalmente usa.
Difícil imaginar outro meio de torrar a paciência dos consumidores.
Difícil também imaginar outro meio de tumultuar e encarecer um
comércio que funciona relativamente bem. O argumento da Anvisa e do
conselho sustenta que as regras se destinam a evitar o uso indevido de
medicamentos isentos de prescrição e, assim, prevenir reações adversas
e/ou interações medicamentosas.
Mas esse tipo de problema não é, propriamente, uma calamidade
nacional, nem sequer uma preocupação grave. Não há notícia de que a
coisa no Brasil esteja fora do controle.
O que ocorre mais é problema com o uso indevido de medicamentos,
digamos, mais perigosos, justamente aqueles que precisam de prescrição
- e que são vendidos sem a receita. Tem a venda no contrabando que vem
do Paraguai, por exemplo, que é um assunto da polícia. Mas muitas
farmácias legalmente estabelecidas também vendem sem prescrição e
depois compram receitas de médicos.
Ora, em vez de tratar desse assunto, a Anvisa e o Conselho de Farmácia
querem introduzir outra prescrição e outra ficha.
O argumento de que o brasileiro não sabe comprar remédio não se
justifica. Os números não indicam uso excessivo dos medicamentos
livres, mesmo porque as pessoas não estão com dinheiro sobrando para
comprar um remédio novo só para experimentar a novidade.
Na verdade, o pessoal da Anvisa tem uma visão autoritária e um viés
contrário ao comércio farmacêutico privado. Entende que as autoridades
sabem melhor o que é bom para as pessoas. Estas precisariam ser
protegidas para não caírem vítimas de capitalistas inescrupulosos.
(Mas quem as protegerá, por exemplo, de um farmacêutico que se recuse
a vender um medicamento?)
Já o conselho está obviamente preocupado em garantir mais postos de
trabalho para os farmacêuticos. Resultado: se isso tudo vingar, o
custo de operação das farmácias subirá.
Ou seja, a pretexto de proteger as pessoas, vão conseguir duas coisas:
aumentar o preço dos remédios e tirar a liberdade de o cidadão comprar
um simples comprimido para dor de cabeça.

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