Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 25, 2009

Roberto Pompeu de Toledo Mártires da glória


da veja

"Havia algo de melancólico na figura dos astronautas 
a participar, com o presidente Barack Obama, da cerimônia 
comemorativa dos quarenta anos do desembarque na Lua"

O tema do romance O Deserto dos Tártaros, do italiano Dino Buzzati, publicado em 1940, é a esperança. Giovanni Drogo, o personagem central da história, é um militar que ganha seu primeiro posto no remoto e isolado forte Bastiani, situado na fronteira norte de um país indefinido, e ali permanecerá até o fim da carreira. As tarefas são repetitivas e inúteis. Nada acontecia por ali fazia anos, e continua não acontecendo. Drogo tem chances de mudar de posto em busca de uma vida com mais ação e mais propósito, mas deixa escapá-las todas. Move-o a esperança de que um dia o inimigo atacará por aquele flanco e enfim se revelará que a vigília não foi vã. Melhor ainda, nesse dia ele poderá se sagrar herói, aspiração máxima de quem escolhe a carreira militar.

Drogo envelhece esperando o que nunca acontece. Passaram-se os anos, mas ele "não pensa que o futuro se reduziu terrivelmente, não é mais como antes, quando o tempo vindouro podia parecer-lhe um período imenso, uma riqueza inexaurível que ele não corria nenhum risco em esbanjar". Ele persistia "na ilusão de que o importante ainda está para começar". Este é o grande momento do livro. Nele o autor ultrapassa os limites de sua história e de seu personagem para apontar lapidarmente um dos mais fortes motivos, se não o mais forte, pelos quais, em qualquer circunstância e qualquer tempo, continua-se a viver e a manter a flama: a persistente esperança de que o melhor ainda está por vir.

A trajetória do trio de astronautas da Apollo 11 não poderia, à primeira vista, oferecer contraste maior com a de Giovanni Drogo. Na vida de Drogo não aconteceu nada. Na deles aconteceu de serem os primeiros a empreender uma viagem de desembarque na Lua. Drogo esperou em vão pela glória. Os astronautas conheceram a glória de uma empreitada que por milênios pareceu impossível. No entanto, havia na semana passada algo de melancólico na figura daqueles três senhores, a participar, com o presidente Barack Obama, da cerimônia comemorativa dos quarenta anos da proeza. A cerimônia soava a desfile de veteranos de guerra. Desfiles de veteranos de guerra são patéticos. Mostram senhores não só distantes do antigo garbo e do momento que os alçou acima do comum dos homens e da existência comum, como os põem na desconfortável posição de reclamar o reconhecimento a uma geração que guarda memória apenas vaga de seus feitos.

Do trio de astronautas, os dois que pisaram na Lua (o outro permaneceu em órbita) experimentaram momentos dolorosos, nestes quarenta anos. Edwin Aldrin mergulhou no alcoolismo e na depressão. Neil Armstrong impôs-se um alerta neurótico contra a exploração não autorizada de sua fama. Deixou de dar autógrafos quando descobriu que eram comercializados. Moveu processo contra uma empresa que usou sua (tola) frase do "pequeno passo para um homem, grande salto para a humanidade". Moveu outro, campeão de exotismo, contra o barbeiro que ousou vender um chumaço de seus cabelos. Trancou-se, como ermitão, na pequena cidade em que mora.

Os heróis da Lua nada têm a ver com Giovanni Drogo, mas lhes ocorreu algo tão incômodo quanto. Conheceram cedo, antes dos 40 anos, o ponto mais alto de sua vida. Como escreveu Aldrin: "Que pode fazer um homem, depois de ter andado na Lua?". A eles foi roubado o princípio basilar da esperança, aquele segundo o qual, na fórmula de Dino Buzzati, "o importante ainda está por começar". É o que ocorre igualmente com outros profissionais de glória precoce, como os jogadores de futebol e as crianças-prodígio que ao crescerem não confirmam seus talentos. Os astronautas da Apollo 11 nos parecem, e talvez pareçam também a si mesmos, personagens que, cedo, foram condenados a virar sombras de si mesmos.

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Quanto a Giovanni Drogo, para quem quer saber o fim da história – a guerra acaba estourando, sim, na fronteira norte, mas bem no momento em que, velho e doente, ele é retirado do forte para dar lugar a alguém apto ao combate. Morre pouco depois, no solitário quarto de uma estalagem, e, no último momento, embora ninguém o contemple, sorri. Segundo escreveu o crítico Antonio Candido, num bonito ensaio, Drogo sorri porque enfim compreende que "a Morte era a grande aventura esperada" e que enfrentá-la "com firmeza e tranquilidade" é "o momento supremo da vida de todo homem". Pode ser. Mas pode ser também, mais prosaicamente, um sorriso de rendição. A morte, no cumprimento de seu papel, acabara de revelar-lhe a vacuidade do sonho, da glória e da esperança.

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