Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 28, 2009

JOÃO UBALDO RIBEIRO Não se salva ninguém?

O GLOBO

Pelo meu gosto, sinceramente, preferia escrever sobre os novos bem-te-vis que têm aparecido aqui no terraço, a visita fugaz do gavião Herculano ou o capenguinha do calçadão, onde nunca mais apareci, fugindo da humilhação impiedosa que ele me infligia. Então por que não escreve? — perguntariam os leitores que também não aguentam mais ler a respeito de como os nossos governantes se desmandam a torto e a direito e como o nosso dinheiro é tungado alegremente pelos que deviam cuidar dele.

Bem, é uma espécie de fraqueza, acho eu. Quando escrevo sobre bemtevis ou sobre o calçadão, fico uma semana sem poder sair nem para ir à padaria, conforme meu costume de provedor esforçado. Sou interpelado ainda pertinho de casa.

— Bom dia — diz-me uma senhora de aspecto severo, assim que dobro a esquina da rua da padaria. — Está indo ao calçadão, assim de havaianas? Você já não anda direito de tênis, imagine de havaiana.

— Não, eu não vou andar no calçadão hoje. Estou dando um tempo a esse negócio de calçadão, não sei se...

— Ainda bem que você está dando um tempo, porque chega de escrever sobre bobagens e futilidades, tem é que descer o malho neles! — Neles? Sim, claro. Mas eu faço muito isso, é que às vezes eu penso que uma mudançazinha de assunto, de vez em quando, é bom.

— É bom para eles! Isso é fugir da sua obrigação! Ou você já se passou para o lado deles? — Para o lado deles, como assim? Não, eu...

— Sei lá, hoje a gente não deve se surpreender com mais nada. Já escreveu a crônica de domingo? — Ainda não, mas é hoje, daqui a pouco.

— Uma ótima oportunidade para se redimir, então. Já estou cansada de defender você na minha turma de pilates. Outro dia me disseram que você já está colocado na Petrobras e por isso só fala agora em calçadão, passarinho, essas coisas. Você não está colocado na Petrobras, está? — Não, de jeito nenhum, não estou colocado em lugar nenhum.

— Bem, eu acredito em você, mas o mesmo não posso dizer de minhas colegas. Vê lá o que você escreve no domingo! Se não for pauleira, você perdeu a defensora! Vê lá, hein, nada de alienação! Prometa! — Mas é que às vezes não é fácil, a gente fica com medo de se repetir, criticando sempre os mesmos, pelas mesmas razões.

— Mas não é preciso se repetir demais! É só cada domingo procurar uma nova área para denunciar. Não se salva nada, nem nenhum deles! Sim, é o que parece hoje, não se salva nada. Agora o foco está no Senado e talvez não saia dele tão cedo, porque chegam a causar abestalhamento os extremos a que se chegou por lá. Com toda a certeza, haverá muito mais a descobrir e não se passa hora sem que o país tome novo susto, embora a reação tenda a tornar-se cínica, nas base do "aqui é assim mesmo, não tem jeito, vai ficar assim até o fim dos tempos".

Nesta época em que se consome tudo, temo até que as denúncias se tornem mercadoria fora da moda e ninguém se interesse por elas. O Senado, deu no jornal, vai fazer uma grande campanha publicitária para melhorar sua imagem e para convencer o povo brasileiro da excelência de suas instituições e do muito que fazem pela coletividade. Tudo mentira, claro, mas a esperança é de que, como sempre acontece, o assunto seja esquecido e tudo volte a ser como dantes no quartel de Abrantes.

Enquanto isso, o Executivo e seus 40 ministros, notadamente na figura de seu Chefe, tiram onda de porreta, como se estivessem acima das críticas feitas ao Congresso. A verdade é que, para manter a famosa governabilidade, o Executivo, desde os remotos tempos do mensalão, explora o que de pior tem a política brasileira, do fisiologismo à corrupção pura e simples. Eleito como reformista, o PT não só demonstrou ser igual ou pior aos que desdenhava e vituperava antes, como não fez reforma alguma, a começar pela política e passando pela tributária. Quanto a esta última, aliás, o presidente, que diz qualquer coisa a qualquer hora, sem a mínima preocupação com veracidade ou coerência, acha que está tudo muito bem como está, pois, afinal, nossa carga tributária sueca proporciona a justiça social e os benefícios que vêm sendo dadivados aos mais pobres. O fato de que a aposentadoria do presidente — bem gordinha para os padrões nacionais — é isenta de impostos e de que ele não paga por nada do que consome com certeza contribui para essa visão.

Se alguém esperava por reformas dignas desse nome, pode ir esquecendo.

O Congresso está promovendo uma atamancação aos trancos e barrancos, sob o acicate das denúncias e entre conflitos de interesse externos e internos. Mas reformar mesmo aquele saco de gatos não parece ser coisa ainda para esta geração, tamanho o porte dos vícios existentes e a influência das pequenas máfias lá incrustadas desde o tempo dos afonsinhos. O Presidente, que continua a beneficiar-se do fato de que a maioria das pessoas presta atenção no que se diz e não no que se faz e põe nas alturas os que já chamou de ladrões com todas as letras, defende Severino, chama os usineiros de heróis, justifica condutas impróprias à base do "aqui sempre se fez assim", vê denuncismo no zelo pela coisa pública e acha justa nossa carga tributária.

Pensando bem, quem não aguenta mais isso sou eu. Nos próximos dias, poderei ser encontrado em Itaparica, na condição de técnico do recém-ressuscitado São Lourenço Futebol Clube.

E vou aproveitar para mandar-lhes um relatório sobre a família de sabiás lá da mangueira do pátio.

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