Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 15, 2008

VEJA Entrevista Mikhail Gorbachev


Por uma glasnost global

O último presidente soviético ensaia seu retorno
à política russa – desta vez, na oposição – e diz que
o mundo todo sofre de um déficit de lideranças


Antonio Ribeiro, de Paris

Meigneux/Sipa

"O planeta necessita de uma nova visão política para ajustar os mecanismos de cooperação existentes entre as nações"

A Biblioteca do Congresso americano, a maior do mundo, dispõe de mais de 250 livros sobre a vida e a obra de Mikhail Sergeyevich Gorbachev. A abundância de títulos reflete o fascínio despertado pelo estadista que desempenhou papel central no fim da Guerra Fria e no colapso do comunismo. Sexto e último dos sucessores de Lenin, Gorbachev governou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas entre 1985 e 1991, quando o império comunista desmoronou. Ao assumir o poder, tinha como principais objetivos ressuscitar a economia e revitalizar o regime soviético. Esses esforços foram sintetizados em dois programas de reforma: a glasnost (transparência), que permitiu maior liberdade de expressão, e a perestroika (reestruturação), a tentativa de modernizar o sistema econômico. Sobretudo por ter posto fim ao domínio soviético na Europa Ocidental, Gorbachev ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 1990. Desde que perdeu o poder, ele se dedica a causas sociais e ecológicas. Logo após a Eco 92, fundou a Cruz Verde Internacional, organização ambientalista com representação em mais de trinta países, incluindo o Brasil. No momento, ele prepara sua volta à política. Dois meses atrás anunciou a criação, em parceria com o bilionário Alexander Lebedev, do Partido Democrático Independente, agremiação de oposição. Aos 77 anos, Mikhail Gorbachev será a estrela de um ciclo de palestras sobre sustentabilidade, promovido pela Cruz Verde Internacional em Belo Horizonte, entre 26 e 28 de novembro. Ele deu a seguinte entrevista a VEJA.

O senhor foi nomeado membro do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética em 1971. Em 2007, as revistas publicaram um anúncio das bolsas Louis Vuitton com uma foto em que o senhor aparece próximo aos vestígios do Muro de Berlim. Em 36 anos, o mundo mudou um pouco, e o senhor deu uma grande contribuição para essa transformação. Qual é a diferença entre o homem Mikhail Gorbachev de antes e o atual?
Ainda sou a mesma pessoa que era antes. A única diferença é que o que aprendi e vivi desde então modificou quem sou hoje. Um de meus aprendizados foi um princípio simples: coloque em prática as suas convicções. Louis Vuitton lançou essa campanha, da qual a minha propaganda faz parte, em defesa da luta pelo meio ambiente. Essa propaganda serviu para contribuir com os esforços mundiais nessa área e para apoiar a Cruz Verde Internacional, organização que eu fundei. Não a vejo como uma propaganda, mas um passo natural na promoção de uma agenda importante, a da ação contra a degradação ambiental.

"A democracia é tanto um valor quanto um instrumento político. Como valor, é universal. Como instrumento, deve ser ajustada a cada país. Há uma versão americana, uma francesa e outra japonesa. A Rússia precisa desenvolver seu próprio modelo de democracia "

É correta a tese de que o senhor promoveu a glasnost e a perestroika apenas para corrigir os erros do sistema soviético, mas não destruí-lo?
A coisa mais importante, tanto para o ser humano quanto para os países, é não mentir para si próprio. É por isso que nós precisamos da glasnost e da perestroika. São duas ferramentas para uma discussão aberta sobre nossa situação atual, são instrumentos para abrir os olhos e a mente das pessoas, para que elas estejam abertas à mudança. Precisamos de uma glasnost global para alinhar os interesses políticos, internacionais, nacionais e da sociedade civil para responder aos desafios e problemas do mundo.

Em 1996, o senhor se candidatou à Presidência da Rússia, mas recebeu menos de 1% dos votos. Como o senhor explica o fato de gozar de muito mais popularidade no exterior do que em seu país?
Não me arrependo de minha candidatura. Em 1996, como candidato, tive a oportunidade de discursar em 22 regiões da Rússia e de expor minha opinião à população. Quanto aos resultados da eleição, eles foram duvidosos. Houve evidências de fraude. O regime de Ieltsin havia cortado o meu acesso à mídia. Em 2005, quando celebramos o vigésimo aniversário da perestroika, uma pesquisa feita no país mostrou que metade da população apoiava a implementação da perestroika e 53% avaliavam positivamente as ações do presidente da União Soviética.

Como o senhor avalia os líderes de seu período de governo, como Ronald Reagan, Margaret Thatcher, Helmut Kohl e François Mitterrand? E como o senhor avalia os que vieram depois: Bill Clinton, George W. Bush e Tony Blair? O que o senhor tem a dizer sobre Angela Merkel, Nicolas Sarkozy e Barack Obama?
Tive a sorte de ter colegas em muitos países que estavam prontos e aptos a liderar os desafios que enfrentamos na época. Sem a parceria deles, não teria sido possível acabar com a Guerra Fria e fazer a transição para um novo mundo. As gerações seguintes de líderes tiveram de lidar com múltiplos problemas de natureza distinta. As políticas atuais estão sendo deixadas para trás pelo ritmo das mudanças globais. Realmente temos um déficit de lideranças. O planeta precisa de uma nova visão política, compatível com os desafios inéditos e capaz de ajustar os mecanismos de cooperação internacional existentes.

Quem comanda a Rússia atualmente? Vladimir Putin ou o sucessor dele, Dimitri Medvedev?
De acordo com a Constituição da Rússia, o presidente é o chefe de estado. Mas não acho que seja produtivo comparar o presidente e o primeiro-ministro. Por sorte, eles trabalham em equipe.

Recentemente, o senhor criticou a visão do Ocidente a respeito da disputa entre a Rússia e a Geórgia pelo enclave separatista da Ossétia do Sul. Em um artigo para o jornal New York Times, o senhor escreveu que "a Rússia foi arrastada para a briga pela imprudência do presidente da Geórgia", Mikhail Saakashvili. O que há de novo nos conflitos armados da Rússia?
Já falei o suficiente à imprensa mundial sobre esse assunto. Minhas opiniões não mudaram e, a julgar pela sua pergunta, você parece já estar familiarizado com elas.

O que significa democracia para os russos, em comparação com a noção ocidental de democracia?
A democracia é tanto um valor quanto um instrumento político. Como um valor, é universal. Mas, como instrumento político, trata-se de um conceito que deve ser ajustado por país, de acordo com sua história, suas tradições e a mentalidade de seu povo. Há uma versão americana de democracia, uma versão francesa, outra japonesa e, talvez, no futuro, tenhamos uma versão chinesa. A Rússia também precisa desenvolver seu próprio modelo de democracia. O país está no meio, talvez ainda no início desse processo. Para responder à sua pergunta, vou repetir uma resposta que dou aos americanos sempre que sou questionado sobre esse assunto: "Sinto-me lisonjeado em saber que você acha que podemos fazer em 200 dias o que os Estados Unidos levaram 200 anos para alcançar".

"Raíssa foi parte de minha vida, se não minha própria vida, por quase cinqüenta anos. Hoje, sinto falta do sentimento de apoio e compreensão que tive enquanto estivemos juntos. Reitero o dogma cristão de que ‘é o amor que conduz a vida’ na Terra

Podemos imaginar um dia em que a igreja, os partidos políticos e a imprensa serão menos servis e dependentes em relação ao poder central na Rússia? Há esperança de que a elite liberal da Rússia fale em nome dos oprimidos por um estado autocrático? Alexander Soljenitsin disse que os intelectuais russos são pessoas que possuem apenas diplomas, bons empregos, privilégios e conforto.
Fico surpreso em perceber como a Rússia é freqüentemente vista em preto-e-branco. Viaje para a Rússia, fique lá um tempo e você verá que existem partidos políticos independentes e uma imprensa livre. Ainda há muito espaço para melhorar, pois romper com o passado é uma tarefa longa. Também não aceito nem concordo com a definição que você deu dos intelectuais russos. Muitos deles pavimentaram o caminho para as reformas – e pagaram com sua liberdade, e até com a vida, por isso. Afinal de contas, o próprio Alexander Soljenitsin foi parte da elite intelectual russa, assim como o foram Andrei Sakharov e tantos outros.

Os oligarcas e a máfia são apenas um fenômeno do princípio do capitalismo na sociedade russa ou um padrão histórico que está aí para ficar?
Esse é um grande problema para nós. Trata-se de uma herança do fim das "reformas" de Ieltsin, que criaram um alto nível de corrupção, que, por sua vez, se tornou um obstáculo enorme ao desenvolvimento da Rússia. Suas raízes estão na forma como as privatizações ocorreram no país. Elas foram feitas levando em conta apenas os interesses de alguns grupos poderosos e relegando a maior parte da população à pobreza. Mas tenho certeza de que com a continuação dessas reformas poderemos controlar essa situação.

Como o Ocidente poderia melhorar seus laços econômicos com a Rússia, sobretudo as economias emergentes de rápido crescimento, como o Brasil?
A crise financeira atual não apenas estilhaçou a base da economia internacional como revelou a fraqueza do atual modelo de desenvolvimento baseado no liberalismo econômico ultra-radical e na ideologia do Consenso de Washington. Não há dúvidas de que precisamos de medidas urgentes de estabilização, mas o mais importante é mudar o próprio sistema. O modelo econômico deveria estar focado nas necessidades do povo, no bom funcionamento dos negócios, nas preocupações ambientais, na mitigação das diferenças sociais e nas medidas decisivas para combater a pobreza. Rússia e Brasil, duas grandes nações, têm enorme potencial na formação dessa nova agenda. Nós precisamos nos concentrar na agenda que está realmente conectada com as necessidades humanas e com os desafios que temos pela frente: a água, a energia renovável e o aquecimento global.

Em 2006, o senhor se associou ao bilionário e deputado russo Alexander Lebedev para comprar metade do jornal independente Novaya Gazeta, conhecido por sua disposição de desafiar as políticas do Kremlin. Em setembro, foi anunciado que o senhor e Lebedev estão criando um novo partido, o Democrático Independente, que deverá estrear nas eleições para a Duma em 2011. O senhor também é fundador da Cruz Verde Internacional, uma organização ambientalista com filiais em mais de trinta países, incluindo o Brasil. Quais são os seus principais interesses?
Não podemos colocar tudo no mesmo saco. Eu fundei a Cruz Verde Internacional, a Fundação Gorbachev, o Fórum Político Mundial e o Encontro Internacional de Laureados com o Nobel da Paz. Estou feliz por ser capaz de contribuir para tentar fazer do mundo um lugar melhor. Sendo um cidadão russo, porém, não posso depreciar a importância da política de meu país. Acredito que o sistema político atual da Rússia é "manco de um pé", pois carece de um necessário elemento centrista. Espero que o Partido Democrático Independente, que nós pretendemos criar, possa preencher essa lacuna e abrir o caminho para as gerações mais jovens aderirem ao processo político.

Suas lembranças costumam começar com a frase "Raíssa e eu", uma referência à sua falecida esposa, Raíssa Gorbachev. O senhor poderia descrever qual a importância da força do amor por trás da missão política?
Raíssa foi parte de minha vida, se não minha própria vida, por quase cinqüenta anos. Nossa vida não foi idílica, mas posso afirmar que tive duas forças sustentando minhas escolhas políticas e o desenvolvimento de minha personalidade: Raíssa e a Universidade de Moscou. Hoje, obviamente, sinto falta desse sentimento de apoio e compreensão que tive enquanto estivemos juntos. Reitero o dogma cristão de que "é o amor que conduz a vida" na Terra.

O senhor afirmou uma vez que não foi um líder por acaso. Como o senhor quer que seu lugar na história seja lembrado no futuro?
A história é uma dama imprevisível. Não quero irritá-la, portanto vamos deixar essa pergunta para ela mesma responder.

Arquivo do blog