Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 01, 2008

O legado de Bush Miguel Reale Júnior

Nesta terça-feira se inicia o término da era Bush, com a eleição presidencial. O candidato republicano, John McCain, clama a plenos pulmões: "Não sou Bush!" O candidato democrata, Barak Obama, não precisa dar esse grito, mas a mudança é o seu mote para recolocar os Estados Unidos da América nos trilhos fincados por seus pais fundadores.

Veemente é, nesse sentido, Al Gore em seu livro The Assault on Reason, no qual denuncia ter a sociedade, dominada pela comunicação televisiva, destituída de espírito crítico, aderido às mentiras impostas pelo governo, que instalou o império do medo. Dessa forma, os músculos mentais da democracia começaram a se atrofiar e a afronta a direitos individuais e a justificação da tortura se consolidaram e constituem a marca da era Bush.

Lembra Al Gore o início do processo maniqueísta instituído por Bush logo após 11 de setembro de 2001, sob o trauma do ataque às torres de Nova York e ao Pentágono. Bush, na manhã de 12 de setembro, disse: "Haverá uma luta monumental entre o bem e o mal, mas o bem vencerá." Dois dias depois, na Catedral Nacional, proclamou ser sua missão livrar o mundo das forças do mal.

O discurso adotado passou a ser o da disseminação do medo, medo da destruição dos EUA e dos americanos, forma sibilina de manipulação dos espíritos, para garrotear uma sociedade amorfa facilmente dominada pela dicotomia simplista do bem e do mal, em luta na qual se admitiu sem discussão o desrespeito às convenções internacionais e à própria Constituição.

Montou-se uma enorme mentira sobre a relação entre Saddam Hussein e Osama bin Laden, à qual se adicionou a acusação de possuir o Iraque arma de destruição em massa, fatos estes manifestamente falsos, aceitos acriticamente em face do paroxismo do medo. O Iraque foi invadido sem haver praticado agressão alguma, em nova violência "justificada" dos EUA, mas desta feita claramente montada pelo governo.

Na luta contra o terrorismo e contra qualquer ato que pudesse longinquamente constituir uma relação perigosa com potência estrangeira, editou-se o Patriotic Act, que contém disposições inconstitucionais de afronta aos direitos individuais, pois autoriza, sem necessidade de apreciação judicial, que órgãos de segurança rastreiem e-mails, vigiem o uso da internet e interceptem ligações telefônicas, bem como efetuem a detenção de "suspeitos" por períodos prolongados. Milhares de americanos passaram a ser espionados, com número incalculável de correios eletrônicos e telefones sendo interceptados, como ressalta Al Gore.

Pior legado, contudo, foi a inusitada aceitação da tortura, que veio a ser intensamente praticada nos presídios de Guantánamo, de Abu Ghraib e em prisões secretas no Egito, no Paquistão, no Marrocos e no Afeganistão, países indiferentes às práticas de violência contra prisioneiros.

Apesar de a Convenção de Genebra de 1949 proibir que prisioneiros, mesmo membros de movimentos civis, sofram mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios, bem como tratamentos humilhantes e degradantes, os suspeitos de ligação com atividade terrorista ou com potência estrangeira foram torturados pelos militares e interrogadores americanos.

Duas pérolas jurídicas produzidas pelos juristas do Ministério da Justiça dos EUA justificaram a tortura, como ressalta, em recentíssimo livro, Michel Terestchenko (Du Bon Usage de la Torture ou Comment les Démocraties Justifient l?Injustifiable). Primeiramente, a tortura, definida pela Convenção da ONU de 1984 como sofrimentos agudos, físicos ou mentais, infligidos a uma pessoa a fim de obter informações ou confissões, foi limitada, pelos juristas por encomenda, ao aspecto físico, ao sofrimento ou ferimento imposto sobre o corpo, sendo admissível a tortura psíquica. Justificaram-se, então, ameaças de morte ou de violação, jogar água fria sobre os corpos nus, encarceramento em local escuro, com contínuos altos gritos ou sons variados, ou com intensa luz, sem descanso, sem horários de alimentação, com interrogatórios que se sucedem por variados interrogadores, sem acusação explícita.

A outra contribuição jurídica da era Bush foi a qualificação dos suspeitos como "inimigos combatentes ilegais", o que os diferencia da categoria de prisioneiros, pois a Convenção de Genebra determina que os membros de milícias ou de corpos voluntários serão considerados prisioneiros se houver à sua frente uma pessoa responsável pelos seus subordinados, se tiverem sinal distinto fixo que se reconheça à distância e usarem as armas à vista, condições estas consideradas não preenchidas pelos suspeitos, que podiam, então, ser presos por tempo indeterminado sem acusação, sem direito a conhecer as provas e as testemunhas, passíveis de serem torturados psiquicamente.

O mais espantoso foi a normalização da tortura como método principal de investigação, pois, conforme o historiador americano Alfred McCoy, 14 mil iraquianos foram submetidos a interrogatórios severos, com tortura eventual, e 1.100 foram vítimas de torturas sistemáticas. Três acusados de serem responsáveis pela Al-Qaeda foram, com autorização da Casa Branca, submetidos à simulação de afogamento. Destaca, todavia, Al Gore que, após a veiculação das fotos de torturas em Abu Ghraib, comissão de investigação sobre os suplícios impostos nesse presídio concluiu que 90% dos torturados eram inocentes.

Em suma, planejadamente sitiaram a razão, desconstituíram o sonho iluminista dos pais fundadores da democracia americana para instalar o reino do medo e da emoção, da morte e da tortura, visando à reeleição de Bush e aos interesses econômicos do monopólio da extração de petróleo no Iraque.

Cabe saber se o fim da era Bush levará a serem responsabilizados os seus chefetes pelas atrocidades e irresponsabilidades praticadas.

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