Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, novembro 11, 2008

MERVAL PEREIRA - O valor das palavras

NOVA YORK. Há palavras, e até mesmo frases inteiras, que nunca foram ditas, mas entram para a História, podendo até mudar os seus rumos. Outras, ditas no calor do debate político, podem criar problemas sérios. A palavra change (mudança), por exemplo, sintetizou toda a campanha de Barack Obama e refletiu o sentimento da maioria dos eleitores americanos.

Quando se trata de tradução, então, o perigo na política é multiplicado, e por isso o presidente Lula carrega consigo, desde os tempos em que viajava pelo mundo como dirigente do PT, Sérgio Ferreira, seu tradutor pessoal, de sua estrita confiança. Há um antigo ditado na Itália que define o tradutor como um traidor (Traduttore, Traditore). Acho que só mesmo Paulo Coelho tem a coragem de dizer que não se incomoda com alterações que os tradutores fazem de suas obras para adaptá-las aos usos e costumes do país em que seu livro está sendo publicado.

Vem da Guerra da Lagosta a famosa frase “o Brasil não é um país sério”, atribuída ao general De Gaulle e que até hoje é um sucesso no Brasil, mas que na verdade foi dita pelo embaixador brasileiro Alves de Sousa em Paris.

Talvez a mais famosa frase não dita da política brasileira seja a atribuída ao brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN na campanha presidencial de 1945, a de que não precisava “do voto dos marmiteiros”, o que o fez ficar marcado como candidato da elite.

Favorito, o brigadeiro foi atingido por um boato espalhado pelo empresário getulista Hugo Borghi, que apoiava a candidatura do general Eurico Gaspar Dutra, do PSD. Na verdade, ele dissera que não queria o voto da “malta de desocupados” que apoiava Getulio Vargas. O termo “malta” significa “bando”, mas também “um grupo de operários que percorrem as linhas férreas levando suas marmitas”.

A mais recente polêmica sobre tradução na política gira em torno do cachorro que o presidente eleito Barack Obama está escolhendo para ir com a família para a Casa Branca. Quando ele disse que queria um cachorro “mutt” como ele, não chamou a atenção dos americanos, mas traduzido por “viralata”, a comparação causou espanto no Brasil.

Embora tecnicamente correta, a tradução de “mutt” por “vira-lata” não exprime o conceito de mestiçagem de raças que está contido na frase de Obama. Essa eleição, por sinal, trouxe para o debate político vários conceitos totalmente distorcidos de seu sentido original, de acordo com a ideologia de quem os usava.

Quando o republicano John McCain disse que a política de impostos de Obama era “socialista”, estava misturando alhos com bugalhos. “Espalhar a riqueza”, como diz querer o presidente eleito, nada tem a ver com “expropriar a riqueza”, que foi o tom dado pelos republicanos radicais.

Houve eleitor de origem cubana que declarou já ter visto aquilo acontecer depois da ditadura comunista implantada em Cuba, como se na ilha de Fidel alguma riqueza houvesse sido espalhada. Nós, brasileiros, por exemplo, sabemos muito bem o que significa “distribuição de rendas”, em oposição a “concentração de rendas”, e o equívoco de considerar uma política de distribuição de rendas como uma prática “socialista” só existe para quem estiver de má-fé política.

Pode-se discutir como realizar essa distribuição de rendas, e discordar da política oficial de usar mecanismos meramente assistencialistas para tal, mas é difícil discordar de que é preciso reduzir a diferença entre ricos e pobres na nossa sociedade.

Conceitos como “populismo”, por exemplo, são completamente diferentes na política norte-americana e na latinoamericana.

Na nossa América Latina, populista é aquele governante que atinge e exerce o poder por meio de uma relação direta com a massa: Hugo Chávez, Perón, Getulio Vargas, Brizola, e Lula, cada vez mais distanciado do “petismo” e alimentando o “lulismo”.

Nos Estados Unidos, há uma intermediação partidária que impede esse comportamento individualizado. O populismo nos EUA está ligado a questões econômicas, com uma prodigalidade fiscal dos democratas, que é o contrário do “Estado pequeno” defendido pelos republicanos.

Já se associou na América Latina populismo a irresponsabilidade fiscal, a gastar mais do que se arrecada, mas esse debate está superado desde que prevaleceu a tese da necessidade do equilíbrio fiscal.

O governo Lula continua mantendo o equilíbrio, embora gaste mais do que poderia com a contratação de pessoal, graças à arrecadação de impostos, o que é um “gatilho” que pode dar errado com a crise econômica que bate às portas do mundo.

Como se viu nas promessas de campanha, tanto de Obama quanto de McCain, a disputa se travou entre a proposta dos republicanos, de cortar imposto dos mais ricos, contra a posição dos democratas de oferecer isenções de impostos para a grande classe média americana.

Tendo a questão econômica aparecido como tema prioritário na campanha para a Câmara e o Senado desde 2006, fato que se acentuou nessa eleição, cada democrata que tirou o lugar de um republicano trabalhou o desconforto econômico sentido pela classe média americana.

Os democratas teriam buscado o voto como verdadeiros “populistas econômicos”, o que provocou uma crítica considerando que o populismo superou a ideologia.

Só para confundir mais ainda, o liberalismo no linguajar político norte-americano está mais ligado a uma visão de esquerda, e também não é nada parecido com o que o liberalismo significa no vocabulário político latino-americano e europeu.

E também, neste caso, o conceito de “esquerda” na política americana não tem muito a ver com a “esquerda” na América Latina.

Tanto que os Democratas, antigo partido da frente liberal, faz parte de uma associação internacional de centro que congrega, entre outros, o Partido Republicano dos Estados Unidos.

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