Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 02, 2008

A História de Carpeaux

Com 4 volumes e 3.025 páginas, a obra máxima do escritor, História da Literatura Ocidental, está de novo disponível aos leitores, em edição do Senado Federal

Ivo Barroso


A obra máxima de Otto Maria Carpeaux, a monumental História da Literatura Ocidental, acaba de ser entregue ao público em 3ª edição, realizada pelas Edições do Senado Federal, agora em quatro alentados volumes totalizando 3.025 páginas. Embora seja este o 107º título do catálogo daquela editora, em geral centrado na historiografia brasílica - exceção feita apenas das crônicas que Machado de Assis escreveu precisamente sobre o antigo Senado - esta edição, de caráter eminentemente literário, se deveu a um encontro de circunstâncias que, ao mesmo tempo, pode resultar em maior amplitude para os horizontes culturais da coleção.

Os livros de Carpeaux, cujas reedições se impunham desde muito por se tratarem de um dos mais elevados conjuntos de análises literárias das letras brasileiras - e, talvez por isso encarados com descaso pelos órgãos oficiais de divulgação -- começaram a ser resgatados a partir de 1999, quando a Topbooks, com a UniverCidade, lançou o primeiro volume dos Ensaios Reunidos, que abrangia os livros publicados em vida do autor, no período de 1942 a 1978. Seguiu-se-lhe em 2005, o segundo volume de ensaios, que recolhia artigos jornalísticos, prefácios e introduções, produzidos entre os anos 1946 e 1971. A Topbooks informava, em seu primeiro tomo, seu projeto de publicar mais 4 coleções de artigos (Ensaios Reunidos III, Obras Históricas Breves, Escritos Políticos Brasileiros, Escritos Políticos Estrangeiros), que precederiam a esperada reedição daquela que, na unanimidade do censo crítico nacional, representa não só o auge da produção carpociana, mas igualmente a obra-prima da historiografia crítica-literária de qualquer língua viva: a História da Literatura Ocidental. Eis que agora, coadjuvando esse empreendimento editorial de grande alcance, e antecipando-se àquela publicação, as Edições do Senado Federal trazem ao público essa obra desde muito esgotada e que tanto vinha servindo aos nossos resenhistas como passaporte para o brilho de suas citações.

Diferentemente das obras do gênero, a história literária de Carpeaux não se limita a arrolar os nomes significativos de um período literário ou da literatura de um determinado país ou língua, com resumos biobibliográficos de seus vultos notáveis, eventualmente acompanhados de pequena antologia. Trata-se aqui de uma visão de conjunto de todas as literaturas ocidentais, analisadas num continuum em que os desdobramentos cronológicos se mostram embrechados de componentes sociológicos, econômicos, políticos, religiosos, etc., daí resultando um panorama em que se busca antes compreender do que explicar os fenômenos humanos e sociais, não no intuito de identificar suas causas, mas antes os propósitos e alcances que as determinam. As análises propriamente literárias são precedidas, em cada capítulo, de um estudo sobre a época ou civilização em que ocorreu o fato, permitindo ao leitor apreciar desde seus indícios ao seu apogeu, bem como as ramificações e desmembramentos de uma eventual sobrevida em outros estágios históricos e/ou artísticos. As análises não contemplam apenas os aspectos triviais da vida dos autores, mas ajudam a compreender como e por que suas obras foram geradas e os reflexos que porventura tiveram sobre outras épocas e regiões. A bibliografia arrola as obras fundamentais publicadas sobre os autores até a época, competindo às futuras edições atualizá-la com dados posteriores que tenham acrescentado ou lançado novos enfoques sobre os temas. Estranha, porém, que haja alguns que ainda leiam esses estudos-críticos abrangentes como se fossem simples baedeker para conhecimentos apressados ou, fragmentariamente, como se tratasse apenas de um repositório de dados biográficos. Este é um livro que deve ser lido por inteiro, como uma sucessão de sagas em que intercedem milhares de personagens implicados nos fenômenos da criação literária. Muitos que luziram em sua época e são hoje inteiramente desconhecidos, e muitos outros que, analisados com o rigor crítico de um scholar como Carpeaux, nem sempre corresponderão às idéias feitas que sobre eles existiam.

Antes de tudo, um livro que hoje só poderia ser realizado por uma equipe de especialistas e com o auxílio da internet. Espanta-nos, pois, saber que nasceu da pena (literalmente) de uma única pessoa, que não dispunha nem desses meios eletrônicos de pesquisa nem de um batalhão de incansáveis lexicógrafos auxiliares, valendo-se apenas do fichário de sua memória inconcebível. Otto Maria Carpeaux, que se chamava Otto Karpfen antes de chegar ao Brasil em 1939, fugindo de sua Áustria natal, que sofrera a anexação nazista, logo se impôs junto aos intelectuais brasileiros, entre os quais fez grandes amigos, que só lhe conseguiram arranjar de início modestas ocupações. Foi bibliotecário e colaborador de jornais, suplementando esses pequenos encargos com a venda de algumas obras raras que conseguira trazer na bagagem. Ele acreditou que a publicação de livros lhe pudesse garantir melhores ingressos e entregou à Casa do Estudante do Brasil seus dois primeiros escritos em português, A Cinza do Purgatório (1942) e Origens e Fins (1943), mas esses ensaios, ainda que substanciosos, estavam longe de espelhar a extensão de sua cultura e capacidade produtiva. Por sugestão de José Lins do Rego, pôs-se a trabalhar por dois anos (1944-45) na composição manuscrita das 5.000 páginas que resultaram nos originais da História da Literatura Ocidental, posteriormente datilografadas por sua mulher, d. Helena, e minuciosamente revistas por ele. A Casa do Estudante do Brasil não dispunha de recursos para bancar a obra que, somente em 1958, começou a ser publicada pelas edições O Cruzeiro, à época dirigidas por Herberto Salles. As tiragens eram irregulares e o 1º tomo, devido à má qualidade do papel, era tão volumoso - dificultando a consulta - que teve de ser desmembrado em dois após a publicação. Carpeaux se queixava das inúmeras gralhas daquela edição, facilmente imagináveis diante da profusão de nomes e obras citados em mais de dez línguas estrangeiras, o que deve ter infernizado a vida dos linotipistas de então. O último volume da edição O Cruzeiro (o VII, fisicamente o oitavo com o desmembramento inicial) só foi publicado em 1966, quando Carpeaux, graças ao amigo Antônio Houaiss, já atuava como co-editor da Grande Enciclopédia Delta-Larousse, numa posição afinal condigna e bem remunerada. Durante muito tempo, reviu e emendou minuciosamente a sua História, à espera que uma segunda edição fosse isenta de falhas. Foi quando conheceu Joaquim Campelo Marques, enciclopedista de profissão, que trabalhava com o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda na feitura de um dicionário. Campelo era, também, dono de uma pequena editora (Alhambra), que acabou por se responsabilizar pelo lançamento da 2ª edição da História, revista e aumentada pelo autor. Já bastante adoentado e após uma sucessão de ataques cardíacos (ele fumava quatro maços de cigarros por dia), Carpeaux morreu em 1978 sem ver a reedição, que seria publicada naquele mesmo ano. Ocupando hoje a vice-presidência do Conselho Editorial do Senado, Campelo encontrou ali o veículo adequado para realizar agora esta 3ª edição com base nos originais da sua antiga Alhambra.

Ivo Barroso, poeta, ensaísta e tradutor, é autor, entre outros, de A Caça Virtual e Outros Poemas

Rio que deságua no presente

Intelectual vienense concebeu a literatura como um processo contínuo de acúmulo e transmissão

Francisco Quinteiro Pires


O Réquiem em Ré Menor KV 626, de Wolfgang Amadeus Mozart, ecoava dentro de uma casa em Lisboa. Um amigo de Otto Maria Carpeaux sabia que a obra de Mozart era uma das preferidas do autor de Uma Nova História da Música. "Isso aqui é o paraíso", disse Carpeaux. O ano era 1976 e o intelectual vienense voltava à Europa pela última vez, após fugir do nazismo e chegar ao Brasil em 1939. "Eu vim me despedir e não rever a Europa", explicou, dessa vez sem gaguejar - ele tinha forte gagueira. Fumante de quatro maços diários de cigarro, Carpeaux morreu dois anos depois.

Otto Karpfen (1900-1978) - o Carpeaux seria adotado no Brasil para agradar ao gosto nacional pelos franceses - dedicou a existência a uma só vocação: o cultivo do espírito, aquele fenômeno que possibilita ao homem que escuta uma música se sentir no céu, mesmo com os pés pregados na terra. (Falante de quase uma dezena de línguas, em um ano aprendeu o português para daí se dedicar ao jornalismo.)

Não é outra coisa que explica a dedicação à escrita de História da Literatura Ocidental, "uma obra ímpar em língua portuguesa", segundo a crítica literária Walnice Nogueira Galvão. Até hoje, a obra-prima de Carpeaux serve de consulta para Walnice, que mandou encadernar a segunda edição, publicada pela Alhambra, por ter-se desmanchado com a manipulação freqüente. O interessado na terceira edição pode comprá-la pelo www.livrariasenado.com. Os quatro volumes da atual reedição não são vendidos separadamente. O preço é R$ 200.

Para resistir à brutalidade, Carpeaux só tinha a arma do espírito, a todo tempo guiado pela dignidade da consciência. Carpeaux tinha um "sentido agudo da crítica social, em uma perspectiva democrática e anticapitalista, cada vez mais imperialista", segundo Alfredo Bosi.

"A experiência da guerra e a barbárie do nazi-fascismo levaram o intelectual exilado a ver antes as sombras do que as luzes daquele imenso painel que o humanismo europeu traçara com tanto orgulho e não menor esperança de indefinida sobrevivência", diz Alfredo Bosi. Nesse caso, "ao intelectual restaria ser um observador estóico, pois nada garantiria a realização de suas idéias e ideais".

A partir de 64, com o golpe que depôs o presidente Goulart, Carpeaux passou a combater o regime militar e deixou a crítica literária em segundo plano. Algo a lamentar, uma vez que ele foi pioneiro na apresentação ao leitor brasileiro de Kafka, Hoelderlin, Benjamin, Pirandello, Croce, Weber, Dostoiévski. Mas não tinha jeito, suas posições políticas eram claras. "Cá e lá havia opressão, cá e lá era necessário resistir. Lugares e tempos diferentes, mas idéias e valores afins", diz Bosi.

Segundo Bosi, Carpeaux era herdeiro de uma visão "européia", a uma só vez pessimista e resistente, que "não se rende interiormente", mesmo tendo consciência do domínio da barbárie. A dignidade de ver o mal, "o príncipe deste mundo", sem a ele se entregar, foi desentranhada, segundo Bosi, do "pensamento sombrio de Burkhardt".

O sentido da história em Carpeaux era inabalável. A teoria da história do suíço Jacob Burkhardt foi inspiradora para Carpeaux, que tinha aquele historiador como conselheiro íntimo para a angústia do século 20 e um dos últimos profetas. A consciência histórica se abalou com o nazi-fascismo, e foi com esse abalo que Carpeaux teve de conceber a História da Literatura Ocidental. Bosi explica que os múltiplos aspectos da cultura pertencem a uma totalidade histórica, daí falar de uma tendência universalista na literatura. "Por trás dessa expressão - literatura universal - está o pressuposto de que a memória letrada do Ocidente pode ser metaforizada por um caudaloso rio que foi recebendo, acumulando e transmitindo a força de suas águas através dos séculos", explica.

A cultura literária se espalhou por todo o Ocidente, e isso é provado pelo reconhecimento aqui e ali de afinidades ideológicas, temáticas ou estilísticas entre as obras. Por isso, é pertinente dizer que a Bíblia, as literaturas grega e romana e a cultura cristã da Idade Média revivem em movimentos posteriores, como o Barroco, o Neoclassicismo, o Romantismo, o Realismo.

Essa visão de Carpeaux se formou com a leitura dos ensaios de autores como Croce, Huizinga, Vossler, Curtius, Spitzer e Auerbach, que "trabalharam com vistas a um projeto de compreender ?por dentro? e abraçar as inter-relações entre as várias literaturas da Europa até pelo menos a irrupção da 2ª Guerra Mundial", segundo Alfredo Bosi.

Assim, Carpeaux exercitou a arte da interpretação. Era uma leitura que observava as ligações entre particular e universal, individual e social, de acordo com Bosi. O culturalismo, herdado de Wilhelm Dilthey e de outros historicistas alemães do começo do século passado, combinou-se com "o olhar dialético" de Hegel e Marx. A análise teórica de Carpeaux promove o diálogo do conceito de "estilos de época" com a noção de que as contradições de cada cultura levam a rupturas capazes de novas sínteses literárias. As motivações pessoais resgatam sua importância histórica sob essa perspectiva crítica.

As razões ideológicas e particulares que moviam Carpeaux não atrapalhavam seu juízo crítico preciso e seguro, mas tolerante, de acordo com Walnice Nogueira Galvão. "Ele era aquela personalidade eruditíssima, um apaixonado por literatura, mas com objetividade", ela diz. No jornal carioca Correio da Manhã, era comum uma gritaria gerada por Otto Maria Carpeaux e o crítico literário José Brito Broca. As testemunhas perguntavam, perplexas, se paixões futebolísticas estavam por trás da acirrada discussão. Não, não. Amigos, Carpeaux e Broca estavam apenas discutindo literatura.

Trechos

O estilo de Homero seria rápido, direto, simples e nobre. As 3 primeiras qualidades definem o realismo (...) As fadigas, a comida, o amor nas suas expressões físicas, tudo entra em Homero, e as palavras mais grandiloqüentes sobre deuses e heróis dariam só contraste desagradável com a realidade da vida descrita, se não fosse a quarta qualidade do estilo: tudo parece dignificado, e não pela escolha de eufemismos, mas pelo emprego de adjetivos e comparações estereotipadas.

Molière é o grande mestre do divertimento ligeiro, para os burgueses e o povo; e só às vezes parece ter utilizado a liberdade do ator cômico para improvisar verdades desagradáveis; assim teria sido como um famoso bobo da corte (Scarron), menos insolente e mais culto. O moralismo de Molière nas ?altas comédias? não difere da psicologia dos ?moralistes?, nos quais também podia aprender o elemento essencial da sua arte: a criação de caracteres, de personagens completas.

Tolstoi era um radical. As suas diatribes violentas contra o regime tzarista e contra o patriotismo oficial não deixam dúvidas a respeito. Assim como A Morte de Ivan Ilitch é o cume da literatura do ?homem inútil?, assim O Reino das Trevas é um cume no movimento de revelar a terrível corrupção moral do homem russo. (...) Tolstoi foi o mais coerente dos ?niilistas?; o seu anarquismo é propriamente o niilismo de um filho apóstata da classe latifundiária.

Proust e Joyce têm muito em comum: serviram-se da mesma ?psicologia em profundidade? para destruir a arquitetura tradicional do romance; apareceram juntos num mundo de revolta aberta contra todas as tradições. É difícil separá-los, mas é preciso. (...) Freud é antes contemporâneo de Proust que de Joyce; a sua Interpretação dos Sonhos é de 1900. Proust é homem da época na qual a nova psicologia apenas ?estava no ar?. Joyce conhece-a pelos livros, pelo estudo.

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