Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 26, 2008

RUBENS RICUPERO Moral da crise



Como no New Deal, só uma nova correlação de forças salvará o modelo americano de recaídas periódicas

AS ANÁLISES da crise financeira falam de tudo, menos de moral e de política. Dão a impressão de que o problema se limita a aspectos técnicos, sem vinculação com os valores éticos e independentes das relações de poder.
Joseph Stiglitz foi o único a observar que a crise teria sobre o fundamentalismo de mercado o mesmo efeito que teve a queda do Muro de Berlim sobre o comunismo. Poderia ter acrescentado que a ligação dos dois eventos não é só comparativa. O fim do socialismo foi um maremoto político. O vácuo ideológico e o desequilíbrio de forças conseqüentes tornaram possível aquilo que era antes inconcebível: a absoluta hegemonia dos mercados financeiros e os excessos responsáveis pelo colapso atual.
Nos Estados Unidos, o setor financeiro saltou de 10% do total dos lucros corporativos em 1980 para 40% em 2006, apesar de gerar apenas 5% dos empregos! Não se avança sobre quase metade dos lucros da economia sem contar com a cumplicidade do sistema político. A mudança de poder que abriu o caminho à hegemonia financeira foi, nesse período, a "revolução" neoconservadora de Reagan e de Thatcher, consolidada por Clinton e pela "terceira via" de Blair.
Sua ideologia era a mistura de globalização com liberalização. Globalização entendida como unificação em escala planetária dos mercados, sobretudo para as finanças. Liberalização no sentido de eliminar tudo que pudesse limitar as oportunidades de negócios. A fiscalização ficaria por conta da suposta capacidade auto-regulatória dos mercados.
Nesse clima, poucos ganharam muito, mas a desigualdade explodiu, o emprego se tornou precário, o salário real estagnou, multiplicaram-se as fusões com cortes de milhares de vagas, os melhores empregos industriais foram terceirizados para países de baixos salários.
O apodrecimento moral desse fim de reino era já perceptível em 2002, durante os escândalos da Enron, da WorldCom e de outras empresas que ocasionaram ao índice Nasdaq a perda de três quartos do seu valor, cerca de US$ 5 trilhões!
Na época, o banqueiro Felix Rohatyn escreveu que o dano causado ao capitalismo norte-americano era de tal gravidade que nem Lênin teria feito melhor!
Exagero, pois tudo se esqueceu: o papel dos bancos de investimento como o Goldman Sachs e o Merrill Lynch, a desmoralização das agências de avaliação de risco e de auditoria, todos novamente co-autores do desastre de agora. A lei Sarbanes-Oxley, as normas mais rigorosas de transparência contábil, nada foi capaz de evitar a repetição da catástrofe em dimensão maior. Alegava-se que o sacrifício dos seres humanos e da moral era o preço a pagar pela eficiência e pela racionalidade impostas pela globalização.
Contudo, longe de ganhar vigor e competitividade, o setor produtivo norte-americano parece um campo de ruínas.
A autodestruição econômica a que assistimos foi prevista por Emmanuel Mounier, meio século atrás: "Por mais racional que seja, uma estrutura econômica baseada no desprezo das exigências das pessoas contém os germes de sua própria condenação".
Da mesma forma que no New Deal dos anos 1930, só uma nova correlação de forças políticas que devolva sentido moral à economia e a recoloque a serviço do interesse do maior número salvará o modelo norte-americano de recaídas periódicas e de inelutável declínio em competitividade produtiva e adesão dos cidadãos.

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