Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 29, 2008

A volta a Keynes e a insanidade dos mercados

- Luiz Carlos Mendonça de Barros


Coluna
Valor Econômico
29/9/2008

O agravamento da crise nos mercados financeiros recolocou o nome de John Maynard Keynes e suas idéias no centro do debate econômico. Sempre que os excessos de uma economia sem regulamentação ocorrem, esta volta às idéias do grande economista britânico se repete. Talvez tenha sido uma crítica sensata e inteligente aos limites do chamado livre mercado sua grande contribuição ao pensamento humano. Por isto sua presença imaginária seja tão forte nos dias de hoje.

Para mim, o grande legado de Keynes continua sendo seu raciocínio brilhante na análise dos fenômenos econômicos reais. Keynes sempre procurava entender estas questões respondendo, inicialmente, a uma pergunta simples, mas definitiva: "Qual é o problema que estamos tentando resolver?"

Esta metodologia, mais de engenheiro do que de economista, está sempre presente nos momentos mais ricos de sua vida. O leitor que quiser constatá-la deve ler seu trabalho "How to pay for the War".

Uma vez conhecido em detalhes o problema a ser enfrentado, ele partia para a elaboração de uma possível solução dentro do quadro teórico disponível para as economias de mercado. Por isto sempre disse a meus alunos que não seguissem com rigor religioso o arcabouço teórico de Keynes, pois ele envelheceu com a evolução das economias de mercado, mas que aprendessem sua forma única de pensar a economia.

Para entender a grave crise financeira de hoje, vamos seguir o método keynesiano de pensar. Se assim o fizermos, chegaremos a um ponto central para explicá-la: a utilização sem limites da securitização de operações de crédito ocorrida nestes últimos anos. Uma das grandes invenções financeiras modernas, sua utilização em um ambiente de regulamentação frágil, acabou por arrastar os mercados a uma situação gravíssima. Para sair desta armadilha, que ameaça arrastar a economia do mundo para uma recessão profunda e extensa, será necessária a mobilização de recursos fiscais em grande proporção, de forma a salvar da insolvência um grande número de instituições financeiras.

E por que a securitização de créditos pode ser responsabilizada por isto? Porque sua utilização - sem controle adequado, repito - destruiu duas cláusulas pétreas do sistema bancário: a relação formal e operacional entre credores e devedores e o controle quantitativo da alavancagem das operações de crédito.

A primeira cláusula é responsável pelo conhecimento da capacidade de pagamento dos devedores individualmente e pela possibilidade de, diante de um problema de inadimplência, uma negociação direta entre credor e devedor. No caso dos derivativos criados pelo agrupamento de devedores em um único contrato, estes mecanismos tradicionais não podem ser exercitados de forma eficiente em um momento como este. Ao se agrupar devedores espalhados por diferentes regiões geográficas e sem um cadastro individual conhecido, perderam-se muitas décadas de conhecimento da atividade bancária.

Tudo foi substituído por um tratamento estatístico, altamente complexo e não testado em condições extremas. A ilusão de que as agências de rating de crédito detinham uma tecnologia sem possibilidade de falhas fez com que estes títulos se espalhassem pelo mundo. Passaram a fazer parte das carteiras de investimento um número imenso e diversificado de investidores institucionais, todos certos de terem uma avaliação correta dos riscos incorridos.

Outro problema desta metodologia é que havia um claro conflito de interesse na ação das agências, na medida em que estas eram remuneradas por serviços prestados aos emissores destes títulos. Recentemente foram divulgados e-mails trocados por funcionários destas empresas e que revelam procedimentos inadequados.

Por outro lado, a utilização descuidada da securitização enfraqueceu de forma importante a limitação quantitativa da relação dívida em circulação e capital do sistema bancário. Ao retirá-los dos livros dos bancos - e, portanto, dos limites do acordo da Basiléia -, a securitização permitiu uma expansão sem controle do crédito ao setor privado, principalmente aos indivíduos. Este excesso, em um ambiente de grande confiança na economia, levou ao crescimento desmedido do endividamento do consumidor, principalmente nos Estados Unidos. Não por outra razão, o consumo dos americanos representa hoje mais de 70% do PIB na maior economia do planeta.

Pior ainda, a certeza de que o risco de crédito nas operações securitizadas seria repassado para terceiros fez de um grande número de intermediários financeiros apenas uma fonte geradora de ativos. Remunerados em função do volume de contratos que conseguiam produzir, sem assumir riscos de inadimplência, qual o incentivo de se buscar devedores com capacidade inconteste de honrar seus compromissos? Na forma como operou o sistema bancário, nenhuma exigência de coobrigação de crédito existia na cadeia de negociação destes títulos. No caso das cessões de operações de crédito dentro do sistema bancário, este é um cuidado que esteve sempre presente no passado.

Este sistema operou trilhões de dólares, durante mais de cinco anos, sem que os órgãos reguladores atentassem para os riscos envolvidos. Como sempre acontece, esta verdadeira corrente da felicidade continuou até que as restrições financeiras reais dos devedores se impusessem e criassem a crise iniciada em julho do ano passado. Várias outras disfunções foram aparecendo ao longo do processo e também contribuíram para a dimensão da crise atual. Cito apenas uma para ilustrar esta minha observação: os próprios bancos aumentaram ainda mais a oferta de crédito ao utilizarem os chamados conduits para contornar os tênues limites de endividamento bancário em funcionamento.

O resultado deste período insano de crescimento descontrolado é a constatação de que será necessária uma injeção de capital no sistema financeiro de mais de US$ 1 trilhão para estabilizar a percepção de risco dos bancos. Este número é uma prova do descontrole dos últimos anos e nos mostra a incapacidade que tem hoje os BCs e outras instituições públicas de acompanhar a evolução criativa - ou destrutiva - do sistema financeiro moderno.

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