Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 31, 2008

A química ruim de Yunus Suely Caldas*


O economista Muhammad Yunus passou rapidamente pelo Brasil, fez uma única aparição pública no último dia 25, em São Paulo, e deixou um alerta muito apropriado a este momento, em que uma onda estatizante corre em países da América do Sul, no Brasil inclusive. "Eu sempre digo que governo e microcrédito têm uma química ruim. Sempre peço que o governo fique longe do microcrédito. O governo precisa criar o ambiente para isso, mas não se envolver com a parte operacional", afirmou o fundador do Grameen Bank, o banco popular de Bangladesh (sul da Ásia) que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006.

Em 25 anos de existência, o Grameen Bank conta uma história de sucesso: concedeu mais de US$ 5,1 bilhões de empréstimos a 5,6 milhões de pobres de 60 mil vilarejos de Bangladesh. Estruturado a partir da convicção de que os pobres podem ser, ao mesmo tempo, devedores confiáveis e empreendedores ávidos, o Grameen tem extraordinária capilaridade, com suas 1.781 agências, exibe um índice de adimplência de 99%, de dar inveja a ricos banqueiros, e sua experiência inspirou iniciativas de microcrédito mundo afora.

E por que convém manter o governo distante? Yunus responde: o governante é tentado a usar o microcrédito para fazer política, o banco arrisca-se a perder solidez econômica e seu destino é o fracasso e a falência. O princípio de Yunus vale para todos os programas sociais manipulados por políticos. No Brasil, até a criação do Bolsa-Escola (hoje Bolsa-Família) predominavam programas do tipo Vale-Leite, em que políticos aliados do governo de ocasião distribuíam o vale em regiões pobres em troca de votos nas eleições. Se não havia político aliado, a população pobre da região ficava sem vale. O Bolsa-Escola teve o mérito de focalizar horizontalmente nos mais pobres e o favorecido passou a receber o dinheiro em saques no banco com cartão magnético, sem a intermediação do político.

A "química ruim" mencionada por Muhammad Yunus é também aplicável a serviços públicos usados pela população. Foram a interferência e a manipulação políticas, as dívidas decorrentes de fornecimento de energia a empresas privadas em troca de doações em dinheiro a campanhas de governadores que levaram as estatais elétricas à ruína, à ciranda do calote nos anos 80/90, em que elas deviam entre si, não pagavam e a conta foi parar no erário, paga por todos os brasileiros. A criação das agências reguladoras foi uma tentativa de resolver o problema, tirar o político do caminho, eliminar a má influência e a interferência de governantes e proteger os direitos dos usuários do serviço público. Mas no governo Lula elas perderam autonomia e hoje não passam de cumpridoras das ordens do ministro da área.

A manipulação e o uso político estiveram vivos, presentes e atuantes ao longo da história das estatais brasileiras. Nas que foram privatizadas foi estancada a sangria por onde corriam dinheiro e fraudes. Mas as que restaram - Petrobrás, Banco do Brasil, Eletrobrás, Furnas - não escaparam da ação corrupta dos políticos no mensalão e outros escândalos financeiros recentes.

A estatal não é um mal em si. Ao contrário, quando bem administrada e sem interferência política, ela exerce papel fundamental para o desenvolvimento do País. O BNDES e a Petrobrás contam histórias de sucesso e também de resistência a pressões exercidas pelos governos. O problema está no seu uso pelos políticos, na troca de favores, nos "negócios" suspeitos que eles levam para as estatais. Mantê-los a distância, como recomenda Yunus, é condição para elas servirem ao desenvolvimento do País.

Na era Vargas, as estatais serviram para impulsionar a industrialização. Nos governos militares, foram multiplicadas e inflaram o poder do Estado. No governo FHC, muitas foram privatizadas e se tornaram lucrativas. As siderúrgicas Usiminas e Cosipa, por exemplo, tinham prejuízos milionários quando estatais e, hoje, são empresas saudáveis, lucrativas.

Nos países do Leste Europeu e da antiga União Soviética, elas funcionavam como braço econômico de governos ditatoriais. Com a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento do socialismo nesses países, a verdade foi exposta ao mundo: além de fabricarem produtos de tecnologia paupérrima (o obsoleto carro Lada é um exemplo), elas escondiam um emaranhado de corrupção e fraudes praticadas pelas elites burocráticas.

O presidente Lula e sua candidata à sucessão, Dilma Rousseff, bem poderiam ouvir mais o que Muhammad Yunus tem a dizer.

*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-RJ (sucaldas@terra.com.br)

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