Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 31, 2008

FERREIRA GULLAR

Os fora-da-lei

Afinal de contas, por que punir, se, mais que as algemas, a cadeia humilha o condenado?

TODO MUNDO sabe que não sou jurista nem mesmo advogado, que não entendo de leis, mas isso não me impede de perceber que alguma coisa de estranho se passa com a Justiça no Brasil. Tenho dificuldade para definir precisamente o que é e, menos ainda, o que provoca essa estranheza. Não obstante, ela existe e se traduz na opinião mais ou menos generalizada de que a nossa Justiça não funciona.
Um fator que, sem dúvida, gera a impressão de que não há justiça é a demora com que os casos são julgados. Alguns membros do Judiciário dizem que a causa disso é o grande número de processos que chegam aos tribunais e o número reduzido de juízes para julgá-los, o que deve ser verdade, pelo menos em parte. Outros entendidos na matéria, no entanto, apontam também, como causa da inoperância do Judiciário, a possibilidade quase ilimitada de recursos de que os advogados de defesa podem lançar mão, tentando impedir que os julgamentos cheguem ao fim. Mas não é só: em determinados casos, esses recursos, valendo-se do decurso de prazo, devolvem à liberdade criminosos perigosos que, presos, esperavam julgamento. Aí, então, eles desaparecem e, ainda que se chegue a sua condenação, à revelia, de nada adianta, já que ninguém sabe onde eles se meteram.Lembram o caso do famigerado Elias Maluco que, solto por decurso de prazo, pouco depois assassinava de modo brutal o jornalista Tim Lopes? Esse é apenas um entre dezenas, centenas de casos semelhantes. E quando o cidadão comum toma conhecimento disso, a conclusão a que chega é de que não há justiça neste país. Somos tentados a concordar com ele.
Não é que não haja Justiça propriamente, mas a Justiça penal está longe de cumprir o que se espera dela. E volto à indagação de sempre: qual é a causa disso? Se há algo errado por que não se corrige? Absurdo seria admitir que a Justiça esteja mancomunada com os criminosos ou que perdeu a noção de sua finalidade social.
Vou ver se me explico. Por exemplo, na maioria dos países, quem for condenado por crime hediondo não tem direito ao benefício de progressão da pena, terá que cumpri-la integralmente. No Brasil, não; para surpresa geral, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que esse benefício deve ser estendido a todos os condenados indistintamente. Que significa essa decisão? É que, para o STF, não se deve fazer distinção entre condenados? Mas é a própria lei que os distingue, são os próprios juízes, quando os punem com penas diferentes. É impossível convencer a opinião pública de que um sujeito que assaltou um banco represente, para os cidadãos, a mesma ameaça que alguém que tirou a vida de várias pessoas e, às vezes, com requintes de crueldade. Nem creio que os juízes do STF pensem assim.Então, o que os leva a tomar decisões como essa?
E aí surge o caso das algemas, que levou aquela Corte de Justiça a quase proibir o uso delas. É estranho, uma vez que todas as polícias do mundo algemam presos, desde que ofereçam algum perigo. Exigir, como fez o STF, que o policial peça autorização por escrito para algemar alguém, sob pena de ser punido e o preso, libertado, parece demais. Como antever a reação de um marginal ou uma pessoa qualquer? Outro dia, um preso livrou-se das algemas de plástico, tomou o revólver do policial e o matou. Há quem associe a decisão do STF à "democratização" das algemas, que passaram a ser usadas em banqueiros e empresários. Para não descriminar, quase abolira o uso delas, mesmo sabendo que punha em risco a vida de outras pessoas. O argumento é que as algemas humilham o preso.
Concordo, todo cidadão deve ser respeitado em sua dignidade e também -atrevo-me a acrescentar- na preservação de sua vida. Pergunto: está certo, em nome da dignidade do preso, pôr em risco a vida dos demais? E alguém perguntará: está certo em nome da vida dos demais, humilhar o preso, algemando-o?
São respostas difíceis, num país que quer tanto ser justo, como o nosso. De uma coisa me convenci, porém: a recente decisão do STF oferecerá ao advogado de defesa novas possibilidades de recursos para soltar criminosos e adiar ou até anular as decisões judiciais.Ele deve estar certo, já que sua tarefa é impedir a punição, coisa antiga. Afinal de contas, por que punir, se, mais que as algemas, a cadeia humilha o condenado? Uma nova era se abre diante de nós, quando, enfim, chegaremos à penitenciária virtual.
Enquanto não chegamos lá, vejo que o esforço que fiz para entender nossa Justiça não foi em vão: a lei está certa, e os juízes, também. Nós é que nos sentimos fora da lei.

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