Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 28, 2008

Roberto Pompeu de Toledo

Primeira e dama

Na morte, ficou claro que a admiração e o respeito
por Ruth Cardoso eram uma unanimidade

Ruth Cardoso não gostava de ser chamada de primeira-dama, como já era amplamente sabido e ficou mais sabido ainda, pela repetição, nestes últimos dias. Mas que fazer? A morte comprovou que ela era, irremediavelmente, a primeira-dama. Não no sentido vulgar, tosco, de mau gosto, importado dos Estados Unidos, recendendo a chiquês e lantejoulas, de mulher do presidente, do governador ou do prefeito, mas no sentido puro e primordial das palavras "primeira" e "dama". Ruth Cardoso caracterizava-se pela combinação de elegância e despretensão, de sofisticação intelectual e simplicidade. Seu funeral juntou, na mesma louvação e na mesma tristeza, pessoas de diferentes áreas e posições políticas opostas. E, por uma vez, pode-se ter certeza de que não era louvação porque dos mortos sempre se diz que foram bons. A admiração e o respeito que despertava faziam dela uma unanimidade.

Ela teria consciência disso? Que pena, se não tivesse. Que ingrato, não ter consciência, em vida, da própria dimensão. Talvez ela intuísse. Mas tanto os que se vão quanto os que ficam não podem ter clareza de coisas que só se impõem em sua plenitude como produto do trabalho da morte. A morte congela e resume e, ao fazê-lo, esclarece. A consciência plena de que Ruth Cardoso era uma unanimidade impôs-se à família, aos amigos, aos intelectuais, aos artistas, aos políticos e ao Brasil na sua morte. O marido é partidário, como não poderia deixar de ser; ela era suprapartidária. Ruth Cardoso assumiu sem complicações a tarefa complicadíssima de ajudar os pobres sem assistencialismo, por meio do programa Comunidade Solidária. Encarou o trabalho pretensiosíssimo de tentar melhorar o Brasil sem pretensão. Era a amiga insuperável dos amigos, a incentivadora, a rede de proteção. Foi velada sob uma bandeira do Brasil que significava mais do que uma imposição de protocolo e enterrada sob uma aura de magnanimidade. A morte a esculpiu, com capricho e precisão, como primeira e dama.

Ruth Cardoso morreu sentada à mesa da cozinha de seu apartamento, enquanto mordiscava uma goiabada, na companhia do filho. De repente fez "Uh", como um soluço, como um arrepio vindo das entranhas, e caiu desacordada para não mais se recuperar. Morreu de morte que não manda aviso. O poeta João Cabral de Melo Neto, a propósito da morte do também poeta W.H. Auden, ocorrida enquanto dormia, num quarto de hotel em Viena, escreveu:

Se morre da morte que ela quer.
É ela que escolhe seu estilo,
sem cogitar se a coisa que mata
rima com sua morte ou faz sentido.
Mas ela certo te respeitava
de muito ler reler teus livros,
pois matou-te com a guilhotina,
fuzil limpo, do ataque cardíaco.

A Ruth Cardoso a morte honrou igualmente com o presente da morte sem doença longa e dor, UTI, respiração artificial e soro, quando não a tenebrosa morte-em-vida do desmemoriamento ou a morte-sem-papel-passado da vida reduzida à sua expressão vegetativa. É um prêmio contra a suprema injustiça de, além de se ter de morrer, fazê-lo sofrendo, moído de dor, ou reduzido a um abantesma a que falta até consciência de si próprio, ou humilhado pela perda do controle dos esfíncteres. Só há dois problemas. Um é que os que ficam, embora poupados das longas semanas, ou meses, ou anos, de sobressaltos, de preocupações, de vigília em hospitais e de plantões à beira da cama, sem falar do preço astronômico das doenças, especialmente as terminais, são fulminados pelo choque do inesperado. O outro é que...

O.k., Ruth Cardoso teve a sorte de ser contemplada com "a guilhotina, fuzil limpo, do ataque cardíaco", mas... precisava ser agora? Não podia ser a mesma morte daqui a cinco, a sete ou a dez anos? Ô parceira intratável, essa tal de morte. Com ela, não há negociação.

Nos casos em que a mulher morre primeiro que o marido, menos freqüentes que o inverso, o desamparo do cônjuge sobrevivente parece maior. A mulher se esvai em lágrimas na morte do marido, mas não costuma lhe custar tanto engrenar na nova vida. O marido se contém na morte da mulher, mas desde o primeiro instante já se adivinha que o desfalque será arrasador. A condição de viúva parece amoldar-se com mais naturalidade ao gênero feminino. Assim como dão à luz sozinhas, criam os filhos tantas vezes sozinhas e sozinhas cuidam dos doentes, passar a viver sozinhas é mais uma transição que absorvem como inevitável. Ao viúvo falta o mesmo instrumental para contornar a nova situação. A solidão que lhe desaba em cima é drástica e irreparável.

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