Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 24, 2008

J R GUZZO

Seja criativo, Minc

"A ministra Marina Silva teve o grande mérito de se demitir do 
governo por discordar do chefe, e não por ter roubado; poupou 
o presidente de dizer que botaria ‘a mão no fogo’ por ela. É muita
coisa, no Brasil de hoje. Mas está longe de ser o suficiente"

Ao receber na semana passada no Palácio do Planalto o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que deve assumir o cargo nesta terça-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva forneceu ao público uma excelente pista para entender por que a questão da Amazônia, tida como o pior problema ambiental do país, está cada vez mais longe de uma solução razoável. "Seja criativo, Minc", disse o presidente da República. "A única coisa que você não pode fazer é não ter idéias." Eis aí: a única coisa que o debate sobre o presente e o futuro da Amazônia tem de sobra, hoje, são idéias. Aparecem na forma de desejos, palpites, propostas ou declarações de fé – só o ministro Minc, antes mesmo de tomar posse, já tinha pelo menos uma dúzia de idéias para apresentar ao governo, da criação de uma Guarda Nacional Ambiental a um plano de "desmatamento zero" em sete anos. O ministro Mangabeira Unger, do Longo Prazo, andou falando algum tempo atrás sobre um aqueduto para deslocar água dos rios amazônicos até as áreas secas do Nordeste. O ministro Reinhold Stephanes, da Agricultura, acha que é preciso mudar o mapa legal da Amazônia. Praticamente todos os ministérios têm alguma proposta urgente para a região, junto, naturalmente, com os governos estaduais, o Congresso e o Judiciário. Cientistas, universidades, a Igreja, a imprensa, centenas de ONGs, o ex-vice-presidente americano Al Gore, Frei Betto – todo mundo tem alguma ou muita coisa a dizer sobre a Amazônia, e cada um tem certeza de estar com a razão. O que não sai disso, de jeito nenhum, é um conjunto, muito menos um projeto.

O que tem saído, ao contrário, é um tumulto cada vez mais rancoroso e cada vez menos útil em relação àquele que deveria ser o propósito comum: achar o melhor equilíbrio entre a preservação da floresta e o progresso econômico de uma região que ocupa mais de 60% do território do Brasil e na qual vivem cerca de 25 milhões de brasileiros. Dá para continuar botando o mato abaixo? Não. Dá para transformar a Amazônia num jardim botânico? Também não. Na vida prática, porém, os participantes do conflito acabam agindo por uma dessas alternativas. Nenhuma das forças envolvidas – e elas são muitas, com mentalidades, posturas e sobretudo intenções diferentes – começa a conversa tentando estabelecer os pontos concretos em relação aos quais poderia estar de acordo com o outro lado. Em vez disso, a conversa sempre começa, justamente, pelos pontos que mais separam uma parte da outra – a receita ideal, como bem se sabe, para detonar qualquer chance de entendimento numa discussão. Não existe a menor disposição, também, de admitir que hoje ninguém tem, não a sério, uma fórmula exata para resolver a questão da Amazônia, como se tem, por exemplo, uma fórmula exata para calcular a área do triângulo. Aceitar isso não seria feio, visto que nenhum país do mundo tem uma Amazônia para nos servir de exemplo e que não há na história experiências prévias de como lidar com uma questão desse porte; seria apenas eficaz. Mas não é o que acontece.

O resultado é que não existe entendimento a respeito de quase nada, incluindo as questões mais simples – a começar pelo que é desmatamento ou não é. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais acha que desmatar é uma coisa; o governador Blairo Maggi, de Mato Grosso, acha que é outra. Dados científicos se chocam entre si, segundo as cabeças que os produzem e analisam. Opiniões de profissionais e de amadores entram com o mesmo peso na discussão – não havendo segurança, para começo de conversa, na real qualificação dos profissionais. Há, sobretudo, um mundo de diferença entre o que se pensa, o que se fala e o que se faz. Em geral, todos os envolvidos no debate sobre a Amazônia dizem que é preciso salvar as árvores e cuidar, ao mesmo tempo, do desenvolvimento da região. Mas, quando entram na vida real, as propostas concretas se excluem umas às outras, dependendo da posição e dos interesses de quem as faz. A ex-ministra Marina Silva, que acaba de deixar o cargo, é um exemplo desse tipo de situação. Marina dizia que não era "contra fazer"; seu problema era "como fazer". Aí é que está: na hora desse "como", a maioria das coisas se enrolava na repartição comandada por ela e não se fazia nada. Estudos que deveriam ficar prontos em algumas semanas levavam mais de um ano para ser entregues. Licenças para todo tipo de obra pública eram negadas como regra. Para os empreendimentos particulares, o tiroteio central vem do Ibama, organismo controlado por uma militância ideológica que se imagina capaz de derrotar o capitalismo dando multas a fazendeiros – ou fazendo coisas ainda bem piores. A certa altura, invocou-se o stress que uma hidrelétrica causaria aos bagres do Rio Madeira.

A ministra Marina Silva, que saiu do cargo com odor de santidade, teve o grande mérito de se demitir do governo por discordar do chefe, e não por ter roubado; poupou o presidente de dizer que botaria "a mão no fogo" por ela. É muita coisa, no Brasil de hoje. Mas está longe de ser o suficiente.

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