Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 26, 2008

VEJA Entrevista: Edmund Phelps

Edmund Phelps
Sol no horizonte

O Nobel de Economia diz que a recessão americana ainda não
começou e que o Brasil tem tudo para se beneficiar da crise


André Petry, de Nova York

David Karp/AP

"O dólar em queda não será bom para as exportações brasileiras, mas pode fazer bem à produção e ao emprego"

Edmund Phelps é um dos acadêmicos que mais incomodaram a vida dos políticos perdulários e populistas. Junto com Milton Friedman, um dos papas do liberalismo, Phelps criou os fundamentos da moderna política monetária. Com seus trabalhos, ele provou que era furada uma tese que reinou absoluta por anos – a de que a inflação podia reduzir o desemprego. A tese fazia a delícia de governantes populistas, que se descuidavam da inflação achando que seriam premiados com a queda do desemprego. O trabalho de Phelps é a razão pela qual, hoje, não há banco central no mundo que deixe de cuidar com zelo da estabilidade de preços. Nesta entrevista, o ganhador do Nobel de Economia de 2006 mais uma vez rema contra a maré. Para ele, a recessão dos Estados Unidos ainda não deu as caras, país nenhum deve lutar para ter pleno emprego e, com a crise atual, o Brasil tem muito a ganhar, ampliando a produção de riqueza e a oferta de emprego. "Fiz algumas checagens estatísticas e descobri que essa tese pode realmente funcionar", diz ele, que participará de um seminário no Brasil no fim de maio. Na modesta sala que ocupa na Universidade Columbia, onde é professor, sentado a uma pequena mesa atulhada de livros, Phelps deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Os eleitores democratas da Pensilvânia votaram nas primárias da terça-feira passada pensando na economia. Uma pesquisa com eles mostrou que 90% acham que os Estados Unidos já estão em recessão. Eles têm razão?
Phelps – Ainda é cedo demais para dizer. Para caracterizar uma recessão, não bastam três ou quatro meses de crescimento negativo, é preciso mais tempo. Uma recessão típica promove uns oito meses de declínio. Agora, é inegável que há uma impressão generalizada de que os Estados Unidos já estão em recessão, sobretudo porque o desemprego está aumentando. Isso acaba tendo um efeito na economia.

Veja – Se ainda não é possível afirmar que a recessão já chegou, é possível especular se virá ou não?
Phelps – São grandes as probabilidades de a recessão chegar. A dificuldade de fazer uma afirmação peremptória está no fato de que os dados se entrecruzam e se entrechocam. Por exemplo, as exportações americanas vão muito bem, a taxa de produtividade também. São dados que caminham contra a idéia de recessão. Mas, apesar disso, eu diria que é grande a possibilidade de que ela ocorra.

Veja – Ela será longa ou curta?
Phelps – Não tenho bola de cristal, tudo depende de quanto tempo será preciso para o setor financeiro retomar seu funcionamento normal. E também da capacidade de recuperação dos gastos com bens de capital, do nível de investimento que teremos.

Veja – Será leve ou pesada?
Phelps – Olhando para o cenário deste momento, eu diria que não será muito pesada, mas é bom não esquecer que os desdobramentos vão depender do comportamento dos consumidores, das grandes empresas, do mercado acionário.

Veja – Na base da atual crise está o estouro da bolha imobiliária. Por que a situação chegou a esse ponto?
Phelps – Os Estados Unidos não são o único país a viver essa situação. A Irlanda, a Holanda e a Inglaterra, por exemplo, tiveram um aumento de preço no setor imobiliário ainda mais espetacular do que o ocorrido no mercado americano. O fato é que qualquer boom, seja em que área for, tende naturalmente a ir longe demais. Com o mero término do boom imobiliário, já teríamos um desaquecimento da economia americana. Mas eu acredito que o mercado financeiro foi ingênuo ao não se dar conta da possibilidade – na verdade, da probabilidade – de que as taxas de juro voltariam em algum momento a seu patamar normal, histórico. O mercado estava despreparado e, por isso, foi pego de surpresa.

Veja – Faltou o quê?
Phelps – Faltou visão estratégica.

Veja – Com a ordem econômica mundial em transformação e os países emergentes ganhando espaço, os Estados Unidos já não fazem tanta diferença como antes?
Phelps – Certamente, não. Os Estados Unidos hoje respondem por uma fatia menor da riqueza mundial, e a economia da Europa, graças ao euro, ganhou em dinamismo e em capacidade de recuperação, tanto que os países europeus têm respondido razoavelmente bem à crise financeira.

Veja – O Brasil tem algo a ganhar com essa crise?
Phelps – Geralmente, uma situação como a atual gera duas conseqüências conflitantes. A primeira, obviamente, é que as exportações brasileiras vão sofrer, se é que já não começaram a sofrer. O outro ponto é que, se a economia americana de fato entrar numa recessão, seja ela longa ou curta, a demanda por investimento nos Estados Unidos vai se enfraquecer. Isso tenderá a derrubar as taxas de juro pelo mundo afora. Disso resultará um efeito positivo no nível de investimento no Brasil. Uma situação semelhante aconteceu nos anos 70. Não lembro se a década de 70 foi um período de prosperidade para o Brasil, mas a lógica indica que deve ter sido.

Veja – Nos anos 70, o Brasil cresceu em ritmo chinês.
Phelps – Isso fortalece uma hipótese que tenho aventado sobre a América Latina. Entre 1920 e 1940, talvez até nos anos 50, os Estados Unidos passaram por uma brutal transformação da indústria, com um crescimento fenomenal da produtividade. O modo como as coisas eram produzidas e também o tipo de coisas que eram produzidas mudaram. Um processo semelhante, embora muito menos profundo, aconteceu na Itália, na França, na Alemanha, no início do século passado. A América Latina ficou para trás, mas entre os anos 50 e 70 as economias latino-americanas começaram a reagir. Depois, voltaram a desacelerar, porque o fosso de produtividade entre a América Latina e os Estados Unidos ficou gigantesco.

Veja – Se a América Latina pode ganhar com a crise, o Brasil pode ganhar com o real forte?
Phelps – Pode, sim. A moeda forte no Brasil poderá levar a uma disciplina na produção doméstica brasileira, com o objetivo de manter seu mercado e seus consumidores, os quais, se não forem bem tratados, podem ir embora. Isso poderá ter repercussão positiva na produção de riqueza e no mercado de trabalho, aumentando a oferta de empregos. Talvez seja a hipótese mais estranha que você já tenha ouvido de um economista acadêmico, mas cheguei a fazer algumas checagens estatísticas e descobri que essa hipótese pode realmente funcionar nesse sentido. É claro que o dólar em queda não será bom para as exportações brasileiras, como já disse, mas pode fazer bem à produção como um todo e ao emprego como um todo. Aliás, os brasileiros não têm muito do que reclamar sobre queda nas exportações. Elas cresceram tanto nos últimos anos que o país pode conviver bem com alguma perda agora.

Veja – Dos candidatos presidenciáveis que estão aí, qual deles está mais preparado para administrar os Estados Unidos em crise econômica?
Phelps – Qualquer resposta representará uma preferência pessoal. Acho melhor não discutir isso, portanto.

Veja – Em quem o senhor vai votar?
Phelps – Nem sei dizer se o meu candidato terá seu nome na cédula.

Veja – Uma vez que John McCain está garantido como candidato republicano, isso significa que o senhor vota num democrata?
Phelps – Pode ser. Mas também pode ser o contrário.

Veja – Os democratas Barack Obama e Hillary Clinton parecem disputar o troféu de quem é mais protecionista, de quem critica mais os acordos de livre-comércio. Se um deles for eleito, o país ficará mais protecionista do que já é?
Phelps – É preciso observar que, muito antes da atual disputa eleitoral, já estava aberta a temporada de crítica ao livre-comércio por parte do Congresso americano. Lá dentro, deve haver um, talvez dois parlamentares a favor do livre-comércio. Essa é a realidade. O Congresso americano é brutalmente protecionista. Como seus eleitores sofreram com os tratados comerciais, e eles querem ser reeleitos, então batem duro nos acordos comerciais. Não digo que os deputados e senadores americanos defendam zero de livre-comércio. Digo apenas que eles defendem o mínimo possível. E isso não é de hoje.

Veja – Com a crise financeira, voltou-se a falar sobre a necessidade de regular mais o mercado. O senhor concorda que é preciso colocar rédeas em Wall Street?
Phelps – Seria útil se os Estados Unidos colocassem em prática a regulamentação que já existe. Minha impressão é que o Federal Reserve (o banco central americano) não foi tão crítico quanto deveria ter sido em relação às práticas de empréstimo no mercado. Gramlich (ele se refere a Edward Gramlich, diretor do Federal Reserve, que, até agosto de 2005, cuidava da área de regulamentação do mercado financeiro. Morreu de leucemia, aos 68 anos, em setembro do ano passado) era muito correto, sério e respeitado por seus colegas. Era meu amigo. A certa altura, ele teve um atrito com Alan Greenspan, que foi presidente do Fed até 2006, e é difícil dizer se isso o deixou de algum modo intimidado no trabalho. O fato é que a maioria das pessoas acha que o Fed tinha de ter sido mais ativo contra as práticas predatórias de empréstimo.

Veja – O pleno emprego, ou taxa de desemprego de 0%, é uma utopia?
Phelps – É uma utopia.

Veja – Uma utopia desejável?
Phelps – Nem desejável é. Quando uma pessoa é demitida, é bom que passe algum tempo em busca de algo melhor para si mesma. Não é desejável que alguém fique desempregado hoje, saia correndo atrás de outro emprego e esteja reempregado amanhã. Numa situação em que há oferta de emprego, é bom olhar, pensar, ponderar diante das opções. Infelizmente, a natureza humana é tal que, com 0% de desemprego, muita gente abusaria do sistema, e o custo do emprego ficaria muito alto. Karl Marx sabia disso perfeitamente. É uma pena que várias gerações de economistas tenham vivido sem entender isso.

Veja – Como estudioso da inflação, o senhor diria que ela pode estar de volta?
Phelps – Acredito que não.

Veja – Existe uma taxa ideal de inflação?
Phelps – Isso muda de país para país, de circunstância para circunstância. De modo geral, quando eu era mais jovem, admitia uma inflação na faixa de 4%. Hoje, como estou mais velho e mais conservador, ficaria satisfeito com uma taxa entre 2% e 3%.

Veja – O senhor disse que, no Ocidente, há dois sistemas econômicos, ambos capitalistas. O dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, que é aberto à inovação, e o da Europa continental, que se preocupa mais em proteger os interesses dos agentes econômicos, dos parceiros, dos trabalhadores, o que tira dinamismo do sistema. O Brasil é como a Europa?
Phelps – Conheço pouco o Brasil, mas, por ser casado com uma argentina há 34 anos, tenho alguma informação. O Brasil, para começar, tem uma legislação trabalhista inspirada no fascismo de Mussolini, e isso provoca muitas dificuldades para os empreendedores, para os que querem abrir um negócio, e essa gente é o celeiro das inovações, é a personificação do dinamismo econômico. Por isso, eu diria que o Brasil está mais para a Europa do que para os Estados Unidos.

Veja – O Brasil é um país pouco inovador?
Phelps – Eu diria que não. Talvez o Brasil seja um dos países mais inovadores da América Latina, certamente mais do que a Argentina ou a Venezuela. O Brasil deve ser até admirado pelo espírito empreendedor de seus agentes econômicos, mas não sei se o sistema financeiro é de alto nível, se está capacitado para trabalhar com essa demanda. Tenho curiosidade em descobrir. Se eu tiver tempo, farei isso na minha próxima viagem ao Brasil.

Veja – Qual é o país mais inovador da América Latina?
Phelps – Apostaria que é o próprio Brasil, mas talvez porque eu não conheça o Chile o bastante. Isso não quer dizer que não haja inovação em outros países. Claro que há, em alguns setores. Na Argentina, por exemplo, a produção de vinhos na região de Mendoza é uma prova disso. Não sei por que o Brasil não produz vinhos como a Argentina.

Veja – Qual deveria ser a prioridade número 1 do Brasil para crescer?
Phelps – Inovação, justamente. Quanto mais inovação, melhor. A inovação aumenta o nível de investimento, produz emprego, estimula a criatividade. Sempre haverá altos e baixos, mas é melhor viver num país que inova do que num país que não inova.

Veja – É comum o Nobel de Economia ser dividido entre dois ou mais economistas. O senhor recebeu o Nobel sozinho. Isso fez diferença?
Phelps – Suponho que me deu um pouco mais de visibilidade e não fiquei perdido no meio da multidão.

Veja – O que o senhor fez com o prêmio de 1,4 milhão de dólares?
Phelps – Está a salvo, depositado no banco. Bem, isso se o banco estiver a salvo...!

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