Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 26, 2008

Roberto Pompeu de Toledo

Recuerdos de Ypacarai

Últimas sobre o país das guarânias, do respeito que
merece Lugo ao respeito que não merece López

O erro cometido pelo Brasil com o boliviano Evo Morales pode resultar num outro erro, agora com o paraguaio Fernando Lugo. O erro com Evo Morales foi ceder rápida e docilmente às reivindicações do antigo líder cocaleiro com relação ao gás vendido ao Brasil. O erro que o Brasil pode cometer com Lugo é, escaldado pela experiência anterior, e para não recair no papel de frouxo, incidir no extremo contrário de endurecer além da conta com o presidente eleito do Paraguai. Os casos são diferentes. Não havia razão para ser tão bonzinho com Evo Morales, que, ao ocupar instalações da Petrobras na Bolívia, converteu-se no primeiro dirigente estrangeiro a tomar militarmente um bem do estado brasileiro desde que (já que o Paraguai está na ordem do dia) o ditador paraguaio Solano López apreendeu o navio Marquês de Olinda, dando início, em 1864, à maior guerra da história da América do Sul. Lugo, às vésperas de ocupar a cadeira que já foi de López, no palácio chamado "López", merece, ao contrário, um tratamento compreensivo, e com vistas a interesses de longo prazo.

O Paraguai é um caroço atravessado na goela do Brasil. A guerra de quase 150 anos atrás legou-nos um vizinho ora tratado com sentimento de culpa, ora com a sem-cerimônia que se dispensa a um estado cliente. O resultado dessa complicada relação, tal qual se cristalizou nas últimas décadas, é o pior possível para os dois lados. O Paraguai é um centro privilegiado de contrabandistas, traficantes, falsários, ladrões de automóveis, receptadores e outros malfeitores cujo alvo ou destino preferencial é o Brasil. No Brasil, contrabandistas, traficantes, falsários, ladrões de automóveis, receptadores e outros malfeitores têm no Paraguai o santuário sem o qual não agiriam com a mesma desenvoltura.

A eleição de Lugo vem interromper 61 anos de domínio do Partido Colorado, tradicionalmente tolerante com a bandidagem, seu cúmplice ou seu sócio. "Que este povo seja conhecido daqui para a frente por sua honestidade, e não pela corrupção", disse Lugo. Eis a mais relevante, oportuna e difícil bandeira que poderia ser levantada no Paraguai. Alguém que se propõe a levá-la adiante merece apoio, não um endurecimento capaz de enfraquecê-lo logo de saída. O aumento da tarifa paga ao Paraguai, ou mesmo a revisão do tratado de Itaipu, parece que fica barato diante da perspectiva de obter, em troca, um governo disposto a estancar o patrocínio oficial à delinqüência.

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Em sua mensagem de congratulações a Fernando Lugo, Hugo Chávez, eufórico com a eleição de mais um presidente de esquerda no continente, citou a "história heróica do povo paraguaio, digno herdeiro da memória do marechal Solano López". Devia ter escolhido herói melhor. O próprio Paraguai de Lugo, se quer promover uma virada histórica, devia escolher herói melhor. López foi um tiranozinho tão característico da América Latina quanto, depois dele, os Somoza na Nicarágua, Trujillo na República Dominicana ou, no Paraguai, o general Stroessner. Roubou dinheiro público, avançou sobre fortunas privadas e apossou-se de terras do estado, até tornar-se, tipicamente, o homem mais rico do país. Montou uma ditadura em que vizinhos vigiavam vizinhos, filhos delatavam pais e padres funcionavam, nos confessionários, como espiões. Encarcerou, torturou e matou. Mandou fuzilar um irmão e espancar a mãe e uma irmã, desconfiado de traição. O historiador Francisco Doratioto, autor de uma completa e equilibrada história da guerra do Paraguai (Maldita Guerra, Companhia das Letras, 2002), escreve: "Na adulteração da história, o lopizmo foi mais eficiente do que o stalinismo, pois este não encontra defensores há anos, enquanto a tirania de Solano López tem, ainda, incautos intelectuais a defendê-la".

Solano López é parte do caroço entalado na goela do Brasil. Não só no Paraguai ele foi reabilitado, no início do século XX, passado o período em que as desgraças da guerra e da tirania, ainda vivas demais, desestimulavam o revisionismo. Deu-se o mesmo no Brasil, e isso, como recorda Doratioto, já desde a propaganda republicana, com a intenção de desprestigiar uma guerra travada ao tempo do Império. O "lopizmo" brasileiro chegaria ao auge durante os anos 1960 e 1970, com origem na esquerda e o objetivo indireto de, ao diminuir os feitos do Exército e da Marinha, incomodar a ditadura militar. Tiveram então livre curso os mitos do López dotado de gênio estrategista digno de um Napoleão dos trópicos, valente campeão da resistência ao imperialismo inglês, dirigente de um país mais igualitário e com nível de educação superior ao dos vizinhos. Na verdade, López comandava um país miserável e um exército maltrapilho, por ele lançado numa aventura militar com tanta chance de sucesso quanto, um século depois, a do argentino Galtieri contra os ingleses na disputa pelas Malvinas.

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