Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 27, 2008

Daniel Piza

De afetos e paixões

sinopse


A humanidade não consegue se livrar da tendência de nomear as coisas impalpáveis de tal modo que pareçam pertencer a esferas distintas, de perímetros definidos. Batizamos os sentimentos, por exemplo, como se eles fossem entidades únicas, quase incomunicáveis entre si. Tantos séculos e livros depois, continuamos a nos deixar levar até o ponto em que, como Deus, julgamos separar o bem e o mal como o mar e a terra. Há, dessa forma, os sentimentos bons e os ruins, e a insistência nessa divisão nítida nos impede de lembrar que tal divisão é o próprio início da confusão. Em todo orgulho há covardia, em toda inveja há admiração, etc.

Às vezes fico observando uma família, por exemplo, e como certas besteiras que deveriam ter sido superadas não foram, embora todos finjam que sim. Filhos marmanjos parecem regredir à infância ou adolescência quando contrariados pelos pais - ou por aquele com quem teve um histórico maior de conflitos - no menos relevante dos assuntos. Ao mesmo tempo, dão a eles uma liberdade de interferir em suas vidas que, para mim ao menos, não faz sentido entre pessoas maduras. Um sujeito de 40 anos que dá a chave de seu apartamento para a mãe e depois fala rudemente com ela ao menor desacordo, desculpe, pediu para que isso acontecesse. A melhor maneira de fazer uma relação ser saudável e duradoura é estabelecer desde o princípio os limites das individualidades.

É algo difícil de entender, principalmente em famílias de culturas latinas. Um distanciamento é necessário para que esse tipo de relação seja mais satisfatório. Se você se deixa afetar tanto, primeiro pergunte a si mesmo por que se deixa afetar tanto; talvez deduza que não soube traçar o contorno de sua independência porque ela não existe como gostaria que existisse. A maior contribuição do teatro de Nelson Rodrigues foi descortinar um caos moral sob a aparência leve do trato brasileiro. Aparência e caos, afinal, se encontram no fato de que são constituídos por um modo passional, cordial (de coração, não de cortesia), de encarar o mundo, sem a mediação da razão. O comportamento barraqueiro em nossos lares ''estruturados'' não me deixa mentir.

O que está envolvido aí é a maneira como se lida com a própria agressividade. Jared Diamond, o autor de Armas, Germes e Aço e Colapso, escreveu em ensaio recente na revista The New Yorker que o sentimento de vingança, tribal e censurável como seja, é natural - inato, inerente à nossa fisiologia - e, portanto, traz satisfação individual a quem o vê consumado. Mas, diz Diamond, crescemos sendo ensinados a nos envergonhar dele e a ter o dever de transcendê-lo. Fingir que não existe não resolve a questão; permitir que se expresse de forma articulada pode ajudar. Expor o instinto de agressão por meio de frase contundente ou irônica, em vez de guardá-lo como rancor no fígado ou extravasá-lo na bile de palavrões ou brigas, é mais produtivo. Dizer o que se pensa, em vez de mandar ''indiretas'' em tom de piada, é mais ético.

''A habituação embota a visão de nosso discernimento'', escreveu Montaigne (e eu estou brincando de Montaigne aqui; todos nós que escrevemos não-ficção brincamos de Montaigne), mas ''a razão humana é uma tinta infundida mais ou menos na mesma proporção em todas as nossas opiniões e costumes''. Isso não significa dizer que por trás da vontade de linchamento esteja, como li, uma sede pelo fim da impunidade brasileira. Mas significa que podemos compreender a motivação da revolta sem deixar de chamar as pessoas ao bom senso, pois a Lei de Talião e a pena de morte não trazem a paz plena que se imagina.

Desconfiar da plenitude é o primeiro passo para criar ambientes mais harmônicos, em que os afetos não descambem para paixões descontroladas. Não é posando de puros que veremos os males expurgados.

CADERNOS DO CINEMA

A maior qualidade do filme Chega de Saudade, de Laís Bodanzky, é justamente observar a mistura dos sentimentos. Cássia Kiss, em especial, faz muito bem o papel da mulher madura que vê o homem com quem flerta se encantar por uma moça graciosa (Maria Flor) que poderia ser ela mesma no passado. Ela projeta no rosto ao mesmo tempo a frustração e a compreensão, o ciúme e a empatia; mesmo quando expressa sua tristeza de modo mais intenso, não é condenando o homem. E este, feito por Stepan Nercessian (finalmente livre dos papéis que se acostumaram a lhe dar), também não deixa de ter um quê de patético em seu encantamento. É um filme de metonímias, de detalhes que revelam o conjunto; à maneira de Ettore Scola ou Robert Altman, se contenta em nos dar lampejos daquelas histórias íntimas. Não que diga algo de novo; mas o que diz, diz bem.

Estômago, de Marcos Jorge, baseado em conto de Lusa Silvestre, tem sabor de novidade. Afinal, conta a história de um migrante nordestino que descobre o talento de cozinhar e o revela aos companheiros de prisão, numa mescla de Ratatouille com Carandiru, e tem o talento de João Miguel no papel principal. O desenvolvimento é que é previsível, e o fato de que ele se apaixone por uma prostituta e dela queira fidelidade soa a clichê. Mas o humor dessa fábula de final trash é garantido, e a noção de que simpatia demais pode ser indigesta.

RODAPÉ

Pouco a pouco os novos livros sobre Machado de Assis, cujo centenário de morte em setembro está atraindo muito mais atenção do que previsto, vão saindo. Almanaque Machado de Assis, de Luiz Antonio Aguiar (Record), é bem-feito, principalmente porque não leva a sério as velhas biografias que tomavam especulações como fatos. (Machado foi coroinha? Quando teve a primeira crise epilética? Quem namorou antes de Carolina? Não sabemos.) Há alguns problemas de revisão, como o crédito da foto dos óculos (é Juan Esteves, não Acervo da ABL) e a atribuição a Millôr da tese de que Bentinho tem atração homoerótica por Escobar (Millôr mesmo reconheceu não ter sido o primeiro sujeito de relevo a dizê-la). Mas isso em nada atrapalha o livro.

Outros livros sobre ele são Machado de Assis - O Romance com Pessoas, de José Luiz Passos (Edusp/Nankin), e O Ceticismo na Obra de Machado de Assis, de José Raimundo Maia Neto (Annablume). Passos analisa o diálogo de Machado com a obra de Shakespeare. Acho que faltou acentuar as diferenças entre Otelo e Dom Casmurro, pois Bento não é, ao contrário do que disse Helen Caldwell, o ''Otelo brasileiro''; antes, inveja a ''fúria do mouro'' e lembra que ''Desdêmona era inocente''. Maia Neto estuda as reflexões morais de Machado e diz que Dom Casmurro é um cético, ao passo que Bentinho é um ingênuo. Mas Dom Casmurro é mais um desiludido, saudoso dos tempos passionais, do que alguém que hoje duvida do que um dia acreditou. Machado é infinito...

Melhor é comemorar o lançamento de seus próprios livros. Por mais que tentem nos convencer de que foi bom poeta, basta folhear Toda Poesia de Machado de Assis (org. Cláudio Murilo Leal, editora Record) para rever mais uma vez que, afora meia dúzia de poemas bem-feitos, essa não era sua praia. De tal ressaca lhe veio a prosa, em que as ilusões de seu romantismo naufragam... Já a caixa com os três grandes romances de Machado - Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro -, lançada pela editora Globo, R$ 80 ao todo, com textos fixados por professores da USP, só merece elogios. Belas edições dos clássicos brasileiros, por incrível que pareça, ainda são raridades em nossas livrarias.

MEA-CULPA

É de Antonio Prata, não de André Laurentino (outro bom cronista da última página do Guia do Estadão), o texto sobre os ''meio intelectuais, meio de esquerda'' que citei na semana passada. Me perguntam também sobre o volume The Art of Fact, que considero superior ao Grande Livro do Jornalismo publicado agora no Brasil. É porque ele tem mais textos, inclusive de Daniel Defoe (outro grande jornalista que se converteu em ficcionista, publicando Robinson Crusoe aos 59 anos), Rebecca West, Ryszard Kapuscinsky e da turma da New Yorker (Lilian Ross, A.J. Liebling, Joseph Mitchell) e do ''new journalism'' (Gay Talese, Truman Capote, Tom Wolfe).

MINICONTO

O marido, João Paulo, foi flagrado por uma amiga com uma mulher vulgar, à saída de um motel. A esposa não acreditou quando soube quem ela era:

- Eu sei que ele é capaz de trair. Mas tenho certeza de que não me trairia com uma mulher desse tipo, uma vagabunda e ainda por cima feia. Conheço meu marido.

A amiga respondeu:

- Talvez você conheça seu marido, mas não conheça o João Paulo.

POR QUE NÃO ME UFANO

Da série perguntar ofende: se os computadores da Casa Civil foram invadidos para a obtenção do dossiê de gastos de FHC, como alegou a ministra Dilma Rousseff em rede de TV, onde está o resultado do rastreamento? Até agora, nada.


Aforismos sem juízo
Era de esquerda até estudar economia. Era de direita até perder dinheiro.


''Cássia Kiss projeta no rosto ao mesmo tempo a frustração e a compreensão, o ciúme e a empatia''

''Dizer o que se pensa, em vez de mandar ''indiretas'' em tom de piada, é mais ético''

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