Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 30, 2007

Olhando as estrelas Gaudêncio Torquato

O Estado de S. Paulo,


Antes de virar a página de 2007, é inevitável constatar: o Brasil não apenas sobreviveu à avalanche de escândalos que, ao longo dos últimos meses, corroeram a imagem de políticos e instituições, como exibe vigor econômico, propiciando um pouco mais de conforto a milhões de brasileiros de classes sociais mais baixas e resultados positivos para setores produtivos. Compreende-se, assim, a exacerbação retórica do presidente Lula, para quem 2008 será "infinitamente melhor". Deixando de lado o advérbio, que soa exagerado nos anais do auto-elogio, é razoável apostar na consolidação dos eixos macroeconômicos, que funcionam de maneira eficaz, até porque são guiados pelo piloto automático. Sob a configuração herdada dos antecessores, aprimorada e praticamente intocável, mesmo sob a pressão de defensores de um programa desenvolvimentista arrojado, criaram-se condições para o País resistir a eventuais abalos gerados pela conjuntura internacional, a partir da anunciada crise americana. Garantido um cinto menos apertado e, por conseqüência, a provisão de bens e a satisfação do estômago, resta saber se a cabeça política da Nação acompanhará, no próximo ano, o previsível bem-estar do corpo.

É aqui que a coisa pega. Nosso sistema político, como bem o sabemos, caminha léguas atrás do sistema econômico. A imagem do trem entra na paisagem. A locomotiva econômica, de porte moderno, puxa um conjunto de compartimentos políticos, velhos e enferrujados. Eis a imagem acabada do País que desponta como potência emergente não pela qualidade de sua democracia, mas em função das condições do território e de seu potencial empreendedor, capazes de torná-lo exportador privilegiado de matérias-primas e gigantesco parque manufatureiro. Por mais que se pregue a fortaleza de nossas instituições, sob o argumento de que os Poderes funcionam a plena carga, executando, legislando e administrando a Justiça, torna-se patente a defasagem entre o que desempenham e o que deles se espera. No fechamento da agenda política, poderíamos estar comemorando os avanços das reformas. Mais uma vez, elas foram para as calendas. Este ano, as conquistas foram modestas, destacando-se a decisão sobre fidelidade partidária, no âmbito da Câmara dos Deputados, após a intromissão do Judiciário na arena política.

A azáfama interna praticamente tomou conta da Casa. Ou seja, o Legislativo conferiu especial atenção a denúncias que atingiram parlamentares. Ademais, a instituição praticamente se curvou às pautas encaminhadas pelo Executivo, usando parte do tempo para patinar nas nuvens, prestando homenagens e congratulações. Apenas 22,9% das propostas saíram da própria Casa, enquanto 75,8% dos 157 projetos sancionados pelo Congresso foram de autoria do Executivo. Por não legislar em matérias fundamentais, como a disciplina política, perdeu tempo procurando estabelecer limites de competência com o Judiciário. Evidenciou-se, nesse aspecto, a ausência de legislação infraconstitucional, buraco aberto pela Constituição de 88. Mais uma vez, as questões endógenas predominaram sobre as questões exógenas, contribuindo para expandir o fosso entre a representação política e a sociedade. O sentimento de inoperância, desleixo e desconexão com a realidade só não chegou ao ponto máximo em função da reação do Senado, ao decidir contra a prorrogação da CPMF.

Os partidos perderam-se no vazio. O que se percebeu, de forma nítida, foi a divisão entre alas oposicionistas e governistas, particularmente por ocasião de decisões importantes. Mas pouco sobrou no terreno de conceitos. A pasteurização avançou. Até para os mais letrados, tornou-se difícil, se não impossível, apontar as idéias para o País (se existem) do PSDB, PT, PMDB, PFL, PDT, PSB, PP e PPS, dentre outras siglas. Algumas lideranças ocuparam bons espaços, acentuando o caráter personalista da política. Mesmo assim, o Legislativo encerra o exercício exibindo força maior do que em dezembro passado, graças à derrota infligida pelo Senado ao governo. Sinal de que os tempos futuros poderão dar mais equilíbrio aos Poderes.

O Executivo evoluiu na maneira de tratar a política. O presidente Luiz Inácio, apesar de abusar de medidas provisórias, esforçou-se para conferir prestígio ao corpo parlamentar. A arrogância de outrora foi substituída por mais atenção aos deputados. Conteve e administrou as ambições do PT - intensas e visíveis no primeiro mandato e voltadas para ocupar quase todos os espaços da administração. Em compensação, ganhou maior respaldo da base. Para avançar em direção a segmentos do meio da pirâmide limpou o verbo de excessos radicais, usando-os apenas em ocasiões especiais. Tornou-se mais palatável a grupos refratários ao perfil. A suavização da imagem lhe conferiu um modernoso desenho social-democrata, de ligeiro matiz populista. Sob o aspecto da apresentação pessoal, livrou-se do "jeito vermelho de ser", à moda agressiva de Hugo Chávez, embrulhado na inseparável camisa vermelha. Na fatura do ano, exibe a contenção de movimentos sociais, principalmente do MST, cujas invasões de espaços privados agora se assemelham a ensaios de experimentação. Mirando o espelho, Lula aprecia a última pesquisa sobre seus feitos: "Dize-me, espelho meu, quem além de mim, ao longo de cinco anos, botou 20 milhões de brasileiros das camadas D e E na classe C?"

O Judiciário foi o mais eficiente em 2007. Deu respostas satisfatórias à sociedade, desencalhando casos, tomando decisões, mostrando a cara e deixando de ser um Poder enclausurado. Mostrou-se muito humano, até por conta de desavenças, tornadas públicas, entre seus pares. A celeridade da Justiça pode vir de exemplos de cima.

Como se pode aduzir, há motivos para crer num amanhã mais radiante. Ante o desvanecimento da fé, lembremos um pequeno conto: "Dois homens olham para fora entre as mesmas grades - um vê o barro sujo da viela; outro, as estrelas." Olhar para o alto, às vezes, faz bem à alma.

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