Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 30, 2007

Convivência e conflito Sergio Fausto

O Estado de S. Paulo,

"People, can?t we all get along?" Com esse apelo patético - "Gente, será que não podemos todos nos dar bem?" -, Rodney King dirigiu-se às câmeras de televisão, a pedido das autoridades de Los Angeles, em mais uma tentativa de conter a onda de violência que varria a cidade na primavera de 1992.

Ela só terminaria quatro dias depois de seu início, com um saldo superior a 50 mortos, 2 mil feridos e US$ 1 bilhão em prejuízos. Os "riots" foram desencadeados por parte da população negra, revoltada com a absolvição dos policiais brancos que, um ano antes, haviam espancado Rodney King, após o interceptarem dirigindo em alta velocidade. Alguém filmou a cena. Ainda assim, o júri, cujos membros eram todos brancos, decidiu não condenar os policiais. Os distúrbios só cessaram com a intervenção de contingentes da Guarda Nacional, do Exército e dos Fuzileiros Navais.

Ingênua na forma, a pergunta de Rodney King aponta para uma questão central: como uma sociedade processa os seus conflitos e estabelece as suas regras de convivência?

Incomuns no Brasil, distúrbios dessa natureza marcaram a história dos Estados Unidos desde o século 19. Coincidem com a urbanização e as migrações internas e externas. Ou seja, com o aumento da proximidade espacial entre contingentes expressivos de grupos étnicos e raciais distintos. Os "riots" estiveram sempre ligados à percepção de injustiças na distribuição de oportunidades econômicas e/ou na imposição da lei entre diferentes grupos étnicos e/ou raciais. A maioria teve como estopim episódios opondo negros, de um lado, e brancos, de outro. De início, assumiram predominantemente a forma de massacres promovidos por grupos brancos racistas, na tentativa de barrar mesmo os mais tímidos passos na direção de uma maior participação dos negros na vida política de cidades americanas. À medida que estes avançaram na conquista de direitos iguais, os "riots" passaram a ser predominantemente revoltas negras contra o não-cumprimento de um direito ou de uma expectativa de direito.

Mas não faltaram ondas de violência ligadas a conflitos entre diferentes grupos étnicos de brancos. Historiadores mostram haver, ao longo do tempo, um aumento dos distúrbios dessa natureza nos anos seguintes à chegada de novos contingentes de imigrantes. Alguns autores vêem na proliferação das máfias italianas em cidades como Chicago e Nova York o resultado da difícil assimilação dos imigrantes da Bota a um espaço econômico já ocupado por irlandeses, alemães e escandinavos, de imigração anterior.

A difícil assimilação do "outro" não é um capítulo encerrado da história dos Estados Unidos, haja vista as tensões existentes em torno dos hispânicos, uma comunidade cada vez maior, que abrange gente de toda a América Latina, em especial dos países centro-americanos e do México. O caso dos hispânicos exacerba uma característica da integração do "outro" na sociedade americana: em que pese toda a força da cultura e do "american way of life", a integração se dá menos pela fusão e mais pela justaposição conflituosa de identidades étnico-raciais em torno de promessas e realizações de igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei. Nesse processo, a eficácia e legitimidade do marco jurídico, sempre tensionado por conflitos, é elemento-chave para que a convivência civilizada se torne possível. Em suma, as relações sociais nos Estados Unidos são de tipo basicamente contratual, com clara definição de direitos e deveres, sob a garantia da aplicação da lei.

Constituído também por muitos "outros", o Brasil foi o verdadeiro "melting pot" das raças e dos grupos étnicos na América. Não que não haja e tenha havido miscigenação nos Estados Unidos. É que lá, ao contrário do que ocorre aqui, as identidades originárias permanecem apensadas à condição de norte-americano. A linguagem expressa essa diferença com clareza: ao passo que os americanos falam em "ítalo-americano", "afro-american", aqui somos todos brasileiros e ponto. A "mistura brasileira" não produziu a "democracia racial", mas gerou uma sociabilidade em que o lúdico e a aceitação do outro são maiores, a despeito da existência de preconceitos e hierarquias sociais e raciais. Uma sociabilidade em que a empatia espontânea pelo outro tem um peso consideravelmente maior. Em compensação, o princípio da igualdade perante a lei tem vigência prática muito menor entre nós. Esse "déficit" nos está custando cada vez mais caro, à medida que as formas tradicionais de dominação e convívio (felizmente, no mais das vezes) vão ficando no passado.

A violência no Brasil não obedece a clivagens étnico-raciais. Ela é anônima, comum, cotidiana e crescente. Dois exemplos palpáveis do preço que estamos pagando pela frouxidão e ineficácia do nosso sistema judicial são os números relativos à criminalidade e às mortes em acidentes de trânsito. Num e noutro caso, não faltam leis. Falta, isso sim, efetiva capacidade de punição aos infratores da lei. À violência se soma um grau de desconfiança elevado em relação ao "outro", como atestam todas as pesquisas comparativas a esse respeito, reflexo de uma sociabilidade que não é mais interpessoal, mas ainda não encontrou mediação eficaz em regras formais que efetivamente se imponham em caso de desrespeito do direito alheio.

Violência e desconfiança crescentes estão minando as bases do nosso convívio. É ingenuidade imaginar que, no Brasil contemporâneo, vamos todos nos dar bem uns com os outros sem a mediação da lei.

Vivemos as dores da formação de uma nova sociedade. Ela poderá ser melhor se avançarmos na direção de uma imposição mais firme e segura dos direitos e deveres de cada um, sejam pobres ou ricos, pretos ou brancos. De preferência, sem perder a nossa natural simpatia. São os meus votos para 2008.

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