Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 27, 2007

A euforia do consumo de massa no Brasil

Propulsão a crédito

Neste ano, brasileiros vão comprar 2,5 milhões
de carros, 9 milhões de computadores e 50 milhões
de celulares. É o resultado da estabilidade econômica,
que baixou juros e elevou o consumo


Julia Duailibi e Cíntia Borsato

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Quadro: Total de crédito na economia
Quadro: O grande impulso na economia...

Os brasileiros nunca compraram tantos carros. E tão equipados. Em 2007, serão 2,5 milhões de unidades, um recorde sem paralelo na indústria automobilística. A participação dos modelos populares no total de vendas caiu de 67% para 55% desde 2002. Atualmente, 30% dos carros do modelo Gol saem da fábrica com ar-condicionado, contra 15% há cinco anos. Acessórios que antes apenas os mais ricos podiam comprar – como o airbag – se popularizaram. E a explicação é uma só: crédito. Em todo o mundo, o setor automobilístico depende do financiamento farto e acessível. No Brasil, até pouco tempo atrás, ele era escasso e caro. Agora já é possível adquirir um veículo sem nenhuma entrada e financiá-lo em até sete anos, com prestações inferiores a um salário mínimo. Paralelamente a isso, a indústria automobilística tornou-se mais produtiva e consegue vender carros a preços relativamente mais baixos do que no passado. Em 1960, eram necessários 92 salários mínimos para adquirir um Fusca zero-quilômetro. Na década seguinte, precisava-se de 73 mínimos. Agora, para adquirir um Uno Mille são necessários 55 mínimos.

Roberto Setton
PARECE OS ANOS 70...
Estão de volta os óculos Ray-Ban, os saltos plataforma e um consumo tão aquecido que faz lembrar milagres econômicos. Mas, no terreno dos negócios, fenômenos que parecem sobrenaturais têm sempre uma explicação lógica. A forte expansão do consumo na década de 70 (abaixo) e na atual começou com reformas econômicas. O desafio é sustentar o crescimento pelas próximas décadas. Isso exige mais segurança jurídica, menos burocracia e carga tributária menor
Sergio Beresovky

O Brasil tornou-se o oitavo maior produtor mundial de veículos, sem que, para isso, fosse necessário recorrer a protecionismo e subsídios estatais. A história de sucesso da indústria automobilística demonstra como o poder das leis de mercado, regidas por instituições eficientes, pode levar um país rapidamente ao desenvolvimento. Casos semelhantes ocorrem em diversos setores da economia, como no comércio de computadores e, mais recentemente, no mercado imobiliário. Essa revolução, que propele o país rumo a uma sociedade moderna de consumo em massa, só foi possível graças a três pilares:

Reformas institucionais – Ninguém empresta dinheiro por filantropia. Para financiarem empresas e pessoas, bancos precisam ter a garantia de que vão reaver rapidamente o bem financiado em caso de inadimplência. Sem essa certeza, cortam a torneira do crédito. Era o que ocorria. As pessoas que não conseguiam honrar as prestações entravam na Justiça, contestando as taxas cobradas pelos bancos. Os processos se arrastavam por anos, e não raro os juízes davam ganho de causa aos compradores. Isso só mudou com a aplicação da alienação fiduciária em garantia, um instituto legal que prevê a rápida retomada do carro financiado em caso de calote.

Competição – Acostumados a ganhar dinheiro fácil financiando o governo, os bancos mal tinham linhas para a compra de automóveis. Para contornarem o problema, as montadoras criaram os próprios bancos e, assim, estimularam a venda a prazo. Quando o negócio deslanchou, os grandes bancos comerciais decidiram aderir, estimulando ainda mais a competição. O financiamento de automóveis tornou-se uma das modalidades mais baratas no mercado (28,7% ao ano em média, contra 140% do cheque especial), atrás apenas do crédito imobiliário (em torno de 12% ao ano). Em 1960, havia apenas sete modelos de carro disponíveis no mercado; atualmente existe uma centena, incluindo os importados. A concorrência assegura uma maior oferta de produtos e contém a alta de preços – seja do produto, seja do dinheiro para comprá-lo.

Estabilidade política e econômica – Desde a implantação do real, em 1994, o Brasil passou por quatro eleições presidenciais, livres e democráticas, sem que isso significasse viradas bruscas na condução da economia. O receituário de controle das contas públicas e combate à inflação foi preservado, possibilitando a queda da taxa de juros e o alongamento nos prazos de financiamento.

Divulgação
Montadora em São Paulo: vendas decolaram quando bancos puderam retomar carro do comprador inadimplente

Foi sob esses três pilares que o crédito para a compra de carros pegou no tranco e acelerou. Não se via no país uma expansão tão vigorosa e duradoura desde o milagre econômico. E essa é uma boa notícia, pois o grau de desenvolvimento de uma sociedade pode ser avaliado, entre outros fatores, justamente pelo acesso que seus habitantes têm a bens de consumo. Não foi por outro motivo que o economista Joseph Schumpeter (1883-1950) disse que o sucesso de uma sociedade capitalista não está em prover meias de seda à rainha da Inglaterra, mas sim em torná-las acessíveis a todas as trabalhadoras. Antes dele, o filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) já havia dito que "nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz se a grande maioria de seus membros é pobre e miserável". Smith via com alegria operários emergindo socialmente, usando sapatos de couro e camisas de linho. Dá-se o mesmo hoje com o brasileiro de baixa renda que usa celular e dirige o próprio carro zero-quilômetro. Essa mudança começou no Plano Real e aprofundou-se com o crescimento econômico iniciado em 2003. O Brasil ultrapassou a França e já é o terceiro maior mercado consumidor de cosméticos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão. Em celulares, o país é o quinto maior em número de linhas. Afirma o economista da LCA Consultores, Bráulio Borges: "O que vimos no passado eram soluços. Foram movimentos passageiros que não se mostraram sustentáveis a longo prazo. Agora as bases estão consolidadas para o crescimento do mercado consumidor a longo prazo". Desde 2003, estima-se que cerca de 6 milhões de pessoas tenham migrado das classes mais baixas e atingido a classe C. Em outras palavras, nesse curto período de tempo uma população equivalente a todo o estado de Santa Catarina ingressou no mercado de consumo.

Roberto Setton
Mais consumo, mais produção, mais emprego. Neste ano, 1,6 milhão de vagas formais já foram criadas

O potencial desse mercado atrai investidores de todo o mundo, como a Elektra, a maior rede de varejo do México, que deverá se instalar em breve no Nordeste. As pessoas de baixa renda tornaram-se também clientes fundamentais para os bancos. Em 2003, elas possuíam 26 milhões de cartões de crédito; hoje são 61 milhões. De acordo com projeções da consultoria McKinsey, o mercado de consumo de massa representava 48% do total de vendas do comércio brasileiro em 2004 e deverá atingir 60% dentro de dois anos. Ao contrário dos surtos anteriores de consumo (como o do Plano Cruzado), o crédito público deixou de ser a principal fonte de financiamento no país. O avanço mais rápido ocorre nas linhas de crédito livre (veja o quadro), cujas destinações e taxas de juro não são determinadas por lei (esse é o caso, por exemplo, do crédito rural e do sistema financeiro habitacional). É o crédito livre que injeta recursos no financiamento de bens de consumo, como celulares, aparelhos de DVD, computadores e automóveis. Ao fim de 2002, essas linhas somavam 240 bilhões de reais; hoje atingem 600 bilhões de reais – um salto de 150%. Um estudo recente feito pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, que ouviu 1.092 famílias na periferia da Grande São Paulo, revela que boa parte delas possui geladeira dúplex, celular, carro, aparelho de DVD, TV de 29 polegadas e outros itens de consumo que eram associados à classe média alta e aos ricos. Detalhe: 70% da compra desses bens foi feita no crediário. Graças ao financiamento, em 14% das residências das famílias pesquisadas há um computador. Ainda que timidamente, viagens aéreas e pacotes turísticos também passaram a fazer parte da vida dessas pessoas.

Mas o grande teste para a expansão definitiva do crédito no país será o financiamento imobiliário. Apesar do rápido crescimento desse segmento nos últimos anos, o crédito habitacional ainda é baixíssimo no Brasil (veja o quadro). O porcentual não chega a 2% do PIB, enquanto no México é de 9% e em países desenvolvidos supera 100%. Mudar esse quadro dependerá não só de manter a estabilidade e reduzir ainda mais os juros, mas também de reformas, entre elas o fim do direcionamento do crédito no setor. Outra medida urgente, não apenas para o ramo imobiliário mas para todas as modalidades de crédito, é a criação do chamado cadastro positivo. Assim, as pessoas com histórico de bons pagadores poderão ter acesso a dinheiro mais barato (atualmente, os bons pagam pelos ruins, encarecendo o financiamento).

Os resultados obtidos até aqui são auspiciosos. "O Brasil ficou dormindo 25 anos e aparentemente está acordando", resume o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda. O crescimento econômico se acelerou, mais empregos foram criados e a desigualdade social diminuiu. Tudo isso sem sinal de reaquecimento inflacionário, porque as empresas estão investindo mais e impedindo que ocorram pressões por aumentos de preço. Nos próximos quatro anos, os principais setores da economia brasileira planejam investir 1 trilhão de reais, bem mais do que os 650 bilhões investidos entre 2002 e 2005, de acordo com o BNDES. E isso é só o começo, se o país mantiver políticas sensatas. Para manter o atual ritmo e até mesmo acelerá-lo, o país não poderá postergar por mais tempo a agenda ainda inconclusa de reformas (veja o quadro abaixo). Há também que acelerar os investimentos em infra-estrutura para eliminar os gargalos da economia. Se mais estradas não forem construídas, por onde trafegarão tantos carros novos?







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