Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 27, 2007

Em defesa do gerúndio

Acusando, culpando e errando

O gerúndio tem sido discriminado e denunciado pelo hábito
nacional de enrolar. O que há de verdade nisso?


André Petry

Fotos Biblioteca Nacional de Lisboa e Roberto Setton
A TRADIÇÃO NOS TRÓPICOS
Luís de Camões, o grande poeta português, e uma operadora de telemarketing: por que será que em Os Lusíadas o poeta disse "cantando espalharei por toda parte", e não "a cantar espalharei por toda parte"? Os operadores de telemarketing sabem a razão: o gerúndio do Brasil é a forma clássica da língua; modernismo é o jeito de falar dos portugueses

Há dez meses no poder, o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, não conseguiu publicar um edital para a construção de uma vila olímpica, uma de suas promessas eleitorais. "Vamos estar publicando", eis o que lhe respondem quando indaga sobre o assunto. O projeto da vila foi concluído e enviado à Procuradoria-Geral, que pediu alterações. O projeto foi então endereçado para uma estatal, a Novacap, que fez as devidas alterações e mandou a papelada ao Tribunal de Contas. E aí? "Vamos estar publicando", informavam ao governador. O Tribunal de Contas pediu novas adaptações, o projeto foi devolvido à corregedoria do Distrito Federal, de onde voltou ao tribunal. "Vamos estar publicando." No Tribunal de Contas, o conselheiro responsável pelo assunto saíra de férias, decorreram os trinta dias regulamentares de seu descanso, o conselheiro voltou e descobriu-se que o terreno da vila olímpica não estava registrado em nome do governo. A papelada foi remetida a outra estatal, a Terracap, que fez o registro e mandou tudo de volta ao Tribunal de Contas. E o edital saiu? "Vamos estar publicando", respondiam ao governador. Irritado com as intermináveis delongas, no dia 28 de setembro passado o governador baixou um decreto demitindo o gerúndio. Motivo: ineficiência. Era o gerúndio oficialmente acusado de leniente e enrolador.

A demissão do gerúndio saiu em decreto publicado no Diário Oficial e completa um mês de vida neste domingo – e, até agora, o edital da vila olímpica não foi publicado. A conclusão é inarredável: o culpado, veja só, não era o gerúndio. Há uns dez anos, uma parcela expressiva de brasileiros passou a implicar com o gerúndio ou, mais propriamente, com o gerundismo, nome dado à praga infecciosa que leva falantes do português a fazer uso abusivo do gerúndio. A versão mais popular informa que a praga surgiu entre operadores de telemarketing, que dizem "Vou estar transferindo sua ligação", em vez de simplesmente dizer "Vou transferir sua ligação". E a praga decorre da tradução rudimentar de manuais de telemarketing escritos em inglês. O idioma de Shakespeare, de fato, usa o gerúndio com entusiasmo e, na tradução às pressas, a frase "I will be sending..." virou "Eu vou estar mandando...". A novidade, para alguns, é que nada disso faz sentido. É verdade que operadores de telemarketing usam o gerúndio com franca voracidade, mas eles não criaram essa forma de expressão – nem ela vem do inglês mal traduzido.

Aos leigos, a influência de um idioma sobre outro pode parecer algo tão misterioso quanto o sorriso de Mona Lisa, mas a sociolingüística há muito já mostrou que uma língua influi no vocabulário de outra, mas não na estrutura, a menos que haja um ambiente de bilingüismo. Como não se pode dizer que operadores de telemarketing formam uma comunidade especialmente bilíngüe, a tese da influência do inglês é só um palpite de amador. "São explicações de quem não entende nada de português", diz a professora Odete Menon, da Universidade Federal do Paraná, que estuda mudanças no português há três décadas e, há dez anos, dedica-se ao velho e bom gerúndio.

Roger Viollet Collection/Getty Images
MIGUEL DE UNAMUNO
O escritor espanhol dizia que o português é como "o espanhol sem ossos"


Velho e bom? Sim, herdado do latim, o gerúndio é a forma mais clássica da língua portuguesa. Está em Luís de Camões, o estupendo poeta morto em 1580. Num dos primeiros versos de Os Lusíadas, texto cuja importância para a língua portuguesa é igual à da Bíblia para os religiosos, lê-se o seguinte: "Cantando espalharei por toda parte / Se a tanto me ajudar o engenho e arte". Camões não escreveu como os portugueses de hoje: "A cantar espalharei por toda parte...". Por quê? Porque, no seu tempo, nem os portugueses usavam essa forma de falar, denominada infinitivo gerundivo. "Até a prosódia do tempo de Camões era mais parecida com a nossa do que com a dos portugueses de hoje", informa Pasquale Cipro Neto, o mais conhecido professor de português do país.

Em História de Portugal, uma obra do século XVI, escrita por ninguém menos que Fernão de Oliveira, autor da primeira gramática da língua portuguesa, aparece 61 vezes o gerúndio dos brasileiros – e nenhuma vez o infinitivo gerundivo dos lusitanos. Estudos comparativos mostram que os portugueses começaram a usar o infinitivo gerundivo no fim do século XIX e sua aplicação se consolidou na primeira metade do século passado (veja quadro). É coisa recente, portanto. Um trabalho da estudiosa Núbia Mothé, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que os portugueses empregam a nova forma mais na língua falada do que na escrita e seu uso é mais disseminado entre jovens. Comparando diálogos das décadas de 70 e 90, Mothé descobriu que o infinitivo gerundivo aparece na boca de 89% dos portugueses de 25 a 35 anos. Entre os de 36 a 55 anos, o porcentual cai para 65%. E fica em 55% entre os que têm mais de 56 anos. Isso também significa que em Portugal, como no Brasil, se usam as duas formas. A diferença é que preferimos a antiga – e eles, a nova.

"O português brasileiro é que usa a forma dita clássica no idioma. O que está em jogo é a antiga crença de que a língua portuguesa pertence a Portugal e que, portanto, eles a usam melhor do que nós", diz Mothé. Como todo idioma vivo, o português, em terras brasileiras, portuguesas ou africanas, está em permanente mudança – algumas coloridas e singelas, outras espinhosas e obtusas. A influência do escravo africano no português do Brasil é notória. Em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre, numa das passagens mais belas do seu clássico, diz que a negra que habitava a casa-grande como cozinheira ou babá fez "com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo". Freyre também informa que os escravos africanos tiveram uma influência semelhante no francês das Antilhas ("adocicaram o francês, tirando-lhe o fanhoso antipático, os rr zangados") e no inglês do sul dos Estados Unidos ("deram ao ranger das sílabas ásperas do inglês uma brandura oleosa").

Miguel de Unamuno, escritor espanhol da virada do século XIX para o XX, dizia que o português é como "o espanhol sem ossos". A imagem traduz a superioridade sonora do português sobre o espanhol quando se trata de suavidade melódica. Pode-se supor que faltou a Unamuno originalidade na sua definição, já que a mesma imagem de uma "língua sem ossos" foi usada pelo alemão Thomas Mann para falar do russo – algo que talvez também não fosse muito original tendo em vista que o próprio Leon Tolstoi, o gigante romancista, admitira, ainda antes de escrever Anna Karenina, que o russo literário "não tinha ossos". Fazia-o em tom crítico, porém. Ainda que a idéia de uma língua desossada seja copiada de um escritor pelo outro, é uma definição exemplar para o português, sobretudo o falado no Brasil. Depois que as negras amaciaram nosso idioma com seus dengos e cafunés, com seus quitutes e quindins – todas essas palavras de origem africana –, Eça de Queiroz percebeu a diferença em relação ao seu português e disse que o idioma do Brasil era um "português com açúcar". Portanto, sem ossos e com açúcar.

Quem há de desgostar de uma língua que se fala sem a rigidez dos ossos e com a doçura do açúcar? Quem há de rejeitar uma língua cujas palavras se dissolvem na boca? São variações que a vida nos trouxe, e, como num darwinismo lingüístico, as que ajudam uma língua a sobreviver e enriquecem suas formas de expressão acabam sendo incorporadas. "Quando uma forma lingüística atende a uma necessidade de comunicação, ela se difunde", explica José Luiz Fiorin, professor de lingüística da Universidade de São Paulo. Eis o caso do gerundismo. Os operadores de telemarketing descobriram que era útil. Porque soa como uma forma polida de falar, tal como o futuro do pretérito é usado por quem quer ser gentil, e dá uma idéia de descompromisso e desobrigação: "vou estar enviando" não é tão afirmativo quanto "vou enviar".

"Quando ouvimos isso, interpretamos que não existe nenhum comprometimento, por parte do falante, de que a ação vai ser levada a cabo", diz a professora Ana Paula Scher, da Universidade de São Paulo, autora de um trabalho sobre o tema junto com a professora Evani Viotti. Ana Paula completa: "É uma estratégia adotada por quem não tem poder de decisão". Isso explica por que o gerundismo é tão irritante. Quando o ouvimos, já intuímos que estamos sendo embromados. Explica, também, por que ele é tão usado por gente que não tem a palavra final, como os operadores de telemarketing. E, por fim, explica por que o edital do governador do Distrito Federal não foi publicado até hoje. O problema não está no gerúndio. Está nos funcionários que cedem à burocracia e nunca se empenham para concluir o que começaram. Se deixarmos o gerúndio em paz, mas criarmos um ambiente em que todos firmem compromissos sólidos (dos operadores de telemarketing aos funcionários públicos de Brasília), a língua voltará a soar doce e mole – e as coisas, no Brasil, a começar pelo ensino de português nas escolas, vão funcionar.


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