Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 30, 2007

DANIEL PISA

Folhetim tropical


Quando soube que havia sido dado como morto, o escritor e humorista americano Mark Twain comentou com a ironia habitual: ''''Os boatos sobre minha morte são precipitados.'''' O mesmo vale sobre as telenovelas brasileiras. É um gênero que volta e meia é dado como acabado, mas eis que aparece uma que põe fim ao boato. Ele se integrou à nossa cultura - no sentido mais amplo, antropológico - de tal forma que muitas vezes é o próprio público que não o deixa morrer. Apesar do desdém de pseudo-intelectuais e da chatice de alguns teóricos, as novelas continuam dando o que as mais diversas pessoas esperam, em alguns casos talvez até mais. No mínimo, portanto, não podem ser ignoradas.

É claro que há muitos problemas. Um deles, porém, é seu maior trunfo: a sensação de que as novelas se arrastam. Essa mesma redundância é o que permite que eu, por exemplo, tenha acompanhado Paraíso Tropical sem ter assistido mais que à metade de seus capítulos. Mas uma das qualidades dessa novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, que terminou anteontem (escrevo na quinta à tarde, sem ter visto os dois últimos capítulos), foi ser pouco arrastada, dosando boas reviravoltas na trama sem perder o fio e deixando apenas para os dois últimos meses a charada do ''''Quem matou?''''. E olhe que em minha opinião um dos principais respiros de qualquer história, o núcleo cômico, não funcionou bem neste caso; as seqüências do condomínio, com aquelas brigas de síndico, não me divertiam nada. No entanto, a novela teve muito humor.

Me refiro, claro, ao elenco de vilões. É por eles que Paraíso Tropical será lembrada. O casal feito por Wagner Moura e Camila Pitanga ofuscou o de Fábio Assunção e Alessandra Negrini, antes de mais nada pelas qualidades dos atores. Bebel se tornou popular, com seus bordões e roupas e sua mistura de malícia com ternura, mas para mim a grande atuação foi a de Moura como Olavo. A passagem calibradíssima do puxa-saquismo para a intimidação, do cinismo para o desarme, e o gestual próprio, como aquele levantar de ombros quando saía caminhando com arrogância, impressionaram, mesmo a quem já o admirava. Que ator! Como não bastasse, Chico Diaz (Jader) fez ótimo cafetão, Tony Ramos (Antenor) encarnou tão bem seu empresário que apagou a lembrança de papéis anteriores, Vera Holtz (Marion) brilhou como parasita da ''''high society''''.

Isso não levanta um problema, até de ordem moral? O casal bonzinho precisava ser tão xarope, tão caricato, tão unidimensional? Aqui e ali os autores tentavam dar consistência para eles, como quando deram a Daniel uma fala em que dizia para a gêmea má, Taís, que uma pessoa pode ser correta e esperta ao mesmo tempo e que nem todo trambiqueiro é inteligente. Mas ele e sua mulher não pareciam nada espertos; os vilões se divertiram mais, tiveram uma temporada bem mais intensa e arriscada. Essa diferença não foi exclusiva de Paraíso Tropical, claro. Vilões sempre puxam a audiência, como as recentes de Fernanda Montenegro em Belíssima, Renata Sorrah em Senhora do Destino e Cláudia Abreu em Celebridade; e basta pensar no Lineu da Grande Família (o excelente Marco Nanini) para confirmar a praxe de que o sujeito de bem é sem graça, burocrático, bege como sua camisa. Desde que folhetins existem é assim. Mas desta vez a assimetria extrapolou.

Apesar disso, a novela sobreviveu a todos os problemas - além do início hesitante, logo corrigido - porque levantava as questões certas. Embora sedutores, não havia dúvida sobre quem eram os vilões, nas mais diversas graduações, desde a vilã por falta de alternativa Bebel até o vilão por falta de caráter Olavo, passando pelo vilão por falta de amor Antenor. Atribuo a essas graduações o sucesso da novela. Numa época em que o Brasil lamenta e debate tantas nuances éticas, o encaixe foi enriquecedor. Sim, novela não se sustenta apenas nisso; precisa combinar divertimento, ação e romance, além de muita conversa fiada, a qual ajuda a dar para ela um ritmo parecido ao do nosso cotidiano. Mas o que dá grandeza é a maneira como traduz seu tempo - e não por acaso Roque Santeiro e Vale Tudo são até hoje eleitas como as melhores da história, justamente porque é impossível entender o Brasil da abertura democrática sem a primeira e o Brasil da decepção democrática sem a segunda. Faltou pouco para Paraíso Tropical chegar a esse patamar.

Outra prova de que novelas se amarram a suas épocas - até porque desenvolvidas de acordo com pesquisas - é a observação de que nos últimos anos a Globo abandonou a velha alternância entre uma novela rural (ou litorânea) e uma novela urbana. Todas as últimas foram urbanas. Se houvesse crítica cultural no Brasil, ela estaria refletindo sobre o motivo dessa mudança. A nação quer se ver nas novelas, e essa nação está em transformação acentuada dos anos 90 para cá; a vila de província dominada por coronel fazendeiro e padre paroquial ainda existe, mas fala a poucos; as metrópoles com periferias crescentes estão no foco. O que tudo isso mostra, claro, é que o Brasil já não é - se é que foi um dia e se é que não é melhor assim - nenhum paraíso tropical.

DE LA MUSIQUE

É um exercício interessante comparar a versão de Roberta Sá e a de Maria Rita para a mesma canção, Novo Amor, de Edu Krieger, em seus CDs recém-lançados. Até a faixa tem o mesmo número, 11. A de Roberta Sá tem um arranjo excelente, com Hamilton de Holanda ao bandolim, e sua interpretação é ao mesmo tempo mais lenta e mais luminosa. A de Maria Rita, com predomínio do cavaquinho, é mais acelerada, mas também mais plana. Seu timbre é lindo, sua afinação perfeita, e ela está mais contida nos trejeitos que tanto lembravam a mãe. Mas o samba que canta - seguindo a atual tendência de gravar o gênero - não parece descontraído.

Hamilton de Holanda, por sinal, está lançando dois belos CDs: Íntimo, em que toca clássicos como Beatriz, de Chico Buarque e Edu Lobo, e O Bem do Mar, de Dorival Caymmi; e, em parceria com o grande pianista André Mehmari, Contínua Amizade, em que, além de Cartola e Pixinguinha, eles dialogam em composições próprias, de Egberto Gismonti e de Guinga. São novos testemunhos do grande momento por que passa a música instrumental brasileira.

RODAPÉ

Lanço amanhã, a partir das 18h30, na Livraria Cultura da Avenida Paulista, meu novo livro, Contemporâneo de Mim (Bertrand Brasil), uma coletânea de dez anos desta coluna. Estão todos convidados.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Por falar em nuances éticas, escrevi no blog, a pretexto de Tropa de Elite, que acho absurda a pirataria que feriu os direitos de todos que criaram, produziram e distribuiriam o filme. Não é que a maioria dos internautas defendeu a pirataria? Eles dizem que roubo é cobrar R$ 40 por um DVD, CD ou livro e que o governo não garante o acesso à cultura como prescreve a Constituição. Eis onde fomos parar. Uma coisa é dizer que os direitos de propriedade intelectual estão sendo rediscutidos em função da internet, e que hoje existem máquinas copiadoras que transferem porcentual ao autor. Outra é celebrar a pirataria como ''''atitude''''. Quem vive de pirataria não cria, não paga impostos e não zela pela qualidade; só por isso pode cobrar preço abaixo do custo e ser premiado pelo descaso geral com a lei, o que só faz encarecer o produto original. Isso sem mencionar que muitos poderiam sim pagar pelo ingresso de cinema ou pelo aluguel do filme - ou pelo livro de que tiram xerox nas universidades. O pior são os argumentos ''''laterais'''', digamos: quem é contra pirataria é por ser burguês, purista ou elitista...

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Com as novas revelações da Polícia Federal a respeito do valerioduto mineiro, tramado na campanha de Eduardo Azeredo para o governo estadual, tucanos e petistas ficam sem saída. Os tucanos se comportam da mesma maneira que Lula - dizendo que foi ''''apenas'''' caixa 2 - ou então comparam um esquema com outro, já que no caso federal houve o mensalão, o pagamento a políticos aliados nos bancos de Marcos Valério, mas nada garante que não aconteceria o mesmo se Azeredo tivesse vencido a eleição. Os petistas, por sua vez, não podem insistir na tese de que não houve dinheiro público, pois o esquema mineiro deixa mais uma vez evidente que Valério vivia dele e só dele, por meio de licitações e outros canais. Se FHC disse que o esquema petista mostrava um tipo ''''sistêmico'''' de corrupção, agora o PT pode dizer o mesmo sobre o tucano. Acontece que, aí, estaria confessando: ''''Somos todos iguais, afundados na mesma lama.'''' O cidadão, esse não pode imaginar outra coisa.

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