Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 29, 2007

Míriam Leitão - A moral do caju

O Globo
29/8/2007
No dia em que todos os homens do presidente estavam indo para o banco dos réus, Lula quase disse a coisa certa: "É um dia sui generis, um dia especial." Era. O ministro Celso de Mello, do Supremo, explicou a razão: é que a decisão do STF "traduz a mensagem de que ninguém está acima da Constituição e das leis da República". E mais disse Lula: "Em algum momento da história, algum de nós cometeu um erro."

Os escorregadios caminhos da mente produzem frases reveladoras, já explicou Freud. Mas o presidente Lula conseguiu contornar a tempo esse ardil psicológico. Ele não se referia ao que estava na cabeça de todos: a aceitação da denúncia contra os acusados do mensalão, ex-poderosos de seu governo, de sua campanha, do PT, mas sobre questão completamente alheia. "É um dia especial para o caju. Em algum momento da história, algum de nós cometeu um erro contra o caju", disse ele, na segunda-feira.

Foram especiais os últimos dias. Para o Brasil. O erro cometido não o foi por "algum de nós", mas por vários deles, 40 ao todo, contra as leis, o Código Penal, a Constituição. Que os próximos anos esclareçam a dimensão desse erro.

Do caju, só se aproveita plenamente a castanha. Eis o erro que incomoda o presidente. Desta decisão do Supremo, tudo se aproveita. Menos pelo resultado, e mais pela solidez do relatório do ministro Joaquim Barbosa, completamente acompanhado pelo plenário. Ele mostrou denodo, cuidado, trabalho árduo em desfazer e reorganizar todos os fios desse novelo sem fim que foi o escândalo do mensalão. O STF cumpriu seu papel de forma técnica, exemplar. Os debates foram esclarecedores.

A ministra Carmén Lúcia perguntou se a quadrilha havia se associado para cometer um crime específico ou vários. O ministro Ricardo Lewandowski foi contra aceitar a denúncia contra o ex-ministro José Dirceu por formação de quadrilha, pois acha que estava sendo "potencializado" o cargo ocupado à época.

Do debate que se seguiu, muito foi ensinado. A pergunta da ministra foi logo respondida pelo relator: foram vários crimes, e não um específico.

Parecia um detalhe, e era relevante. Outros ministros falaram e Celso de Mello arrematou: o crime de formação de quadrilha, como descrito no artigo 288 do Código Penal, se configura se houver três fatos: primeiro, mais de quatro pessoas; segundo, associação com a finalidade específica de cometer um número indeterminado de crimes; terceiro, tem que haver permanência, estabilidade.

Se for uma associação de pessoas para cometer um delito específico, e depois nada mais, seria um "concurso de agentes". Um termo bem menos pesado que "quadrilha", que tem um sentido compreendido por qualquer pessoa. E é isso que pesa agora, como dúvida - e não como sentença -, sobre o coração do primeiro governo Lula.

A dúvida de Lewandowski foi esclarecida. José Dirceu, o todo-poderoso, recebia mesmo muita gente em seu gabinete e fazia a coordenação política. Mas há indícios de que foi mentor, o chefe principal, dos ilícitos supostamente cometidos, sustentaram os outros nove ministros.

Do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa, tudo se aproveita. Por exemplo, a citação, aparentemente lateral, de que o mesmo tipo de esquema - de usar um contrato de publicidade como fachada para conseguir recursos e cobrir gastos políticos - já havia sido feito através do mesmo Marcos Valério.

- Para o ex-governador e hoje senador Eduardo Azeredo, do Partido da Social Democracia Brasileira, conforme inquérito 2280 nesta Corte - disse.

O PSDB paga, assim, o preço da hesitação sobre esclarecer e punir este fato. Na época da denúncia, Azeredo era presidente do partido e foi poupado.

O ministro Ayres de Britto explicou que o STF está sendo técnico, mas passando um recado político: o de que é preciso reencontrar o caminho da ética na política. Curioso é que o partido que mais exibiu esta bandeira foi exatamente quem mais a afrontou neste que é, sem dúvida, o maior escândalo da história política brasileira.

Durante os mais de dois anos desde a eclosão do caso, o presidente Lula mudou várias vezes sua explicação sobre os fatos: não sabia, não houve mensalão, aquilo era feito sistematicamente no país, e tudo não passa de conspiração contra o governo. Quando José Dirceu se demitiu da chefia da Casa Civil no rasto dos escândalos, foi homenageado por 18 ministros e inúmeros parlamentares, que foram se despedir. Lula disse, em carta, que eram "infundadas acusações lançadas por aqueles que querem desconstruir nossa história e nosso projeto de mudança social".

Ontem se viu que, na opinião dos ministros do STF, há dúvidas razoáveis que justificam processo contra todos aqueles que foram acusados pelo Ministério Público.

O caju é controverso. Segundo o dicionário Houaiss ele é uma fruta, a castanha; e o pseudofruto, o resto. O presidente pode sustentar em público que são essas suas inquietações mais profundas. Mas outros pontos deveriam ocupar sua mente. Porque a grande pergunta não feita é: a quem aproveita o crime? Tudo o que supostamente foi feito beneficiou um projeto político que o governo representa. Mesmo que tenha sido sem o seu conhecimento.

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