Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 28, 2007

DORA KRAMER Discordar é preciso

Em sua mágoa e melancolia infindas, o ex-ministro Waldir Pires disse na quarta-feira em entonação de defesa o que o presidente Luiz Inácio da Silva repetiu na quinta em modulação de ataque: que a lógica eleitoral preside todas as críticas feitas ao governo, notadamente em função da letargia no trato da crise aérea.

Para Pires, sua demissão foi fruto de "pressão de forças políticas" tomadas de indisfarçável sanha para atingir o presidente da República porque não aceitam sua reeleição. "Essa eleição não termina nunca", afirmou, ao que Lula acrescentou: "No Brasil, a eleição não termina nunca. Ela é eterna".

Reclamava aí da "classe política", na opinião dele carente de civilidade, desprovida da percepção de que há momento de "fazer oposição" e momento de "construir o Estado".

Nenhuma novidade nessa maneira enviesada de ver as coisas, de olhar no espelho e enxergar no mundo a conduta do PT quando oposição em tempo integral, durante o qual muitas vezes prestou bons serviços à Nação, embora em vários momentos tenha se posicionado na contramão da reconstrução do Estado.

Como depois de assumir o poder o partido associou-se a preceitos mais modernos, essa parte poderia ser relegada ao terreno dos perdoáveis equívocos de perspectiva, não fossem dois aspectos: a apropriação dos conceitos antes rejeitados para ações de auto-exaltação e a "denúncia" dos mesmos como malfeitos para uso na disputa com o adversário. Caso típico das privatizações.

O fato em relevo agora na retomada da prática de creditar toda e qualquer discordância à inconformidade com a eleição de Lula, é que ela se dá no momento exato em que começam a surgir na sociedade movimentações aqui e ali de cobranças organizadas por correções de rumo.

A cidadania mostra sinais de vida e, nisso influiu decisivamente a perda das 200 vidas no dia 17 de julho.

Há o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, lançado pela OAB, há passeatas programadas para este domingo em homenagem às vítimas do desastre, mas também em apelo ao fim da "passividade e da tolerância", há um sentimento latente de necessidade de o Brasil começar a adotar padrões mais altos em todas as áreas, inclusive no comportamento da população, há as vaias e há a falta de traquejo de Lula para conviver com elas.

Por causa da crise, do desastre, dos escândalos, dos planos de publicidade vasta e execução escassa, por causa das atitudes fugidias, irônicas, grosseiras do presidente Lula e seus auxiliares diante de tudo, a mobilização evidentemente acaba assumindo tom oposicionista.

Mas não só, visto que quando se fala em "cansaço" com "tudo isso que está aí", fala-se também do Congresso, do Judiciário, da oposição partidária incapaz de estabelecer um contraponto positivo nas proposições; fala-se da ausência de interlocução entre Estado e sociedade, falam-se dos desmandos em série, ora agravados pela falta completa de cerimônia, mas velhos conhecidos do Brasil.

Governos levam sustos quando não estão cientes de que a eleição não lhes dá só a prerrogativa festiva do poder. Implica o cumprimento de tarefas.

E quando o senso comum julga-se subtraído, não enxerga nos governantes e nas instituições esforços no incremento do bem maior, a reação natural é a grita.

Confundi-la propositadamente com intenções golpistas decorrentes de inconformidade eleitoral seria apenas pueril, não revelasse também o vezo autoritário de dar ao exercício da crítica e da cobrança um caráter criminoso. Só em ditaduras há crime de opinião.

Na democracia, reza norma acaciana, a cidadania, a discordância, a prática da política, o embate, o contraditório, não se restringem ao ato de votar.

Fosse assim, teríamos de admitir como cabíveis manifestações apenas de dois em dois anos - ocasiões em que sempre se pode atribuí-las a intenções mesquinhas de poder. No período da entressafra eleitoral, por esse raciocínio o País fica obrigado a dizer amém a tudo a fim de permitir ao governo "construir o Estado" em paz.

Ainda que a concepção dessa construção não esteja em conformidade com a opinião de uma boa parcela da população. Seja ela rica, pobre ou remediada.

Desse modo, pretende-se uma nação submissa, uma população de carimbadores reverentes de atos oficiais.

Todas as cobranças apresentadas agora em gradação mais exacerbada vinham sendo feitas em feitio de alerta. Dizia-se que os escândalos não sanados cobrariam um preço adiante, falava-se sobre a necessidade de preservação de princípios, de rejeição vigorosa a práticas viciadas, mais recentemente, de dez meses para cá, apelava-se com rigor à sensibilidade governamental para a situação do tráfego aéreo.

Os ouvidos fizeram-se de mercador e as bocas de praguejadores confiantes e zombeteiros. A sociedade começa, então, a mostrar-se farta.

Não faz isso como desrespeito à democracia. Antes por respeito a seus direitos de reclamar da maneira de Lula governar. Não custava a ele, mais não seja em atenção à tão estimada lógica eleitoral, ao menos escutar no lugar de incriminar.

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