Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 24, 2007

DANIEL PISA

Mundo musical

Daniel Piza

“O mundo musical” é como Mário de Andrade chamava sua coluna sobre o assunto, nos anos 40. Mário, apesar do nacionalismo, adoraria estar vivo para curtir os tantos concertos bons que São Paulo recebe, como o do violoncelista Yo-Yo Ma na quarta-feira passada, no Teatro Cultura Artística. O que impressiona em Yo-Yo Ma não é apenas a técnica perfeita, quase infalível, mas também a naturalidade com que a exerce. Parte de seu carisma vem daí mesmo, da música que faz; a outra parte vem de sua simpatia pessoal, de seu gosto ecumênico - da Finlândia ao Brasil, da China à Argentina - e também de um ou outro gesto para marcar o fim de uma peça e arrancar os aplausos já previstos. Em certos momentos ele dá a impressão de nem estar concentrado; em outros, mostra que sua concentração é tão forte que nem as tosses mal-educadas e outros ruídos da platéia brasileira a prejudicam.

Também parece conduzir com leveza o fantasma de Rostropovitch, o grande violoncelista que, como notou o jornalista João Sampaio, era referência em quase todo o repertório das noites paulistas, exceto por Egberto Gismonti. E foi justamente numa peça de Shostakovich, Sonata em Ré Menor, Opus 40, uma das muitas dele que Rostropovitch gravou, que Yo-Yo Ma teve seu ponto alto. Mostrou entrega comparável apenas à do mestre russo; fez caber em seu cello desde um contrabaixo, nos pulsos do anguloso segundo movimento, até um violino, nas passagens mais líricas e lentas do terceiro. Também deleitou com a abertura da sonata de Schubert e com o recitativo da de César Franck. Se não tem a densidade de Rostropovitch, por ser mais ortodoxo, é tão preciso quanto ele era. Um filho americano de chineses tocando russo e austríaco para uma platéia de brasileiros é a própria encarnação da música como idioma mundial.

“Transcendência, não existe mais senso de transcendência neste mundo”, canta Dionísio, já no primeiro verso. “Demônios e deuses agora estão desempregados; só são bons para os museus.” Dionísio é um metalúrgico descendente de gregos que é aficionado por ópera e, por isso, patrulhado pelos colegas que acham Che Guevara mais importante do que Mozart. Em outra passagem, Dionísio diz a eles que “o futuro não tem consistência” e reafirma seu desejo por uma cantora de ópera, para a qual se declara numa loja de perfumes. Nesse momento, se envolve numa confusão com a polícia, ao lado dos colegas, e é salvo pela cantora, que vence o medo e declara amá-lo. No entanto, ela prefere sua reputação e tenta partir para Tóquio, mas o mau tempo não deixa. Então decide voltar e, com Dionísio, faz um “dueto improvável” (Unlikely Duet), em que suas vozes tão distintas conseguem casar palavras e música.

Essa recusa em confundir lirismo com escapismo, essa vontade de superar a polêmica entre Nietzsche e Wagner (Nietzsche se queixou do efeito hipnótico de Wagner e disse que na Carmen de Bizet estava a verdadeira função da música, sensual e direta, contra o “decadentismo cristão”), essa negação do dilema entre ser comercial e ser radical - eis a marca de modernidade do musical de Steve Nieve, Welcome to the Voice (Deutsche Grammophon), que acaba de ser lançado nos EUA. Sting (Dionísio), Barbara Bonney (cantora), Elvis Costello (policial), Robert Wyatt (amigo de Dionísio) e o Quarteto Brodsky estão no CD, que vem dar alento a um ano até aqui carente de novidades musicais. É uma mescla de ópera com jazz, tributária de Kurt Weill e Stephen Sondheim, com algumas melodias e letras de primeira.

Na bela voz de Wyatt, Grand Grand Freedom é uma canção antológica, em que o amigo repreende Dionísio por gostar de “música dos ricos”, a qual lhe tiraria a dignidade. A resposta é ótima: Dionísio diz que essa é “a dignidade de cavar sua cova”; o original tem um jogo de palavras que não dá para traduzir: “The dignity to dig your grave.” Para ele, a música humaniza - como as vozes de Norma e Madame Butterfly que o visitam à noite - e é um “veículo espiritual do pensamento”, não algo a descartar por não poder “mudar a história”. No dueto final, ele e a cantora entoam em uníssono: “Nenhuma certeza de que não falharemos/ Nenhuma garantia/ Um talvez positivo.” Nada de revolução, nada de transcendência: um “talvez positivo”.

Paul McCartney, que fez 65 anos na semana passada, lançou novo CD, Memories almost Full. Há algumas canções claramente criadas para o sucesso, como a primeira, Dance Tonight. O que McCartney é, acima de tudo, um excelente melodista, aparece especialmente em The End of the End. Estrutura e letra simples, mas que balada! Na revista The New Yorker de 4/6, ele contou a John Colapinto que não lê partitura e deixou claro que George Martin fez a diferença em álbuns como Sgt. Pepper. Mas conta suas referências musicais, de Cole Porter a Buddy Holly, o modo como se tornou excelente baixista (e ensinou Lennon a afinar e tocar melhor a guitarra), a origem de melodias como Yesterday, Hey Jude e Let it Be. Se é que essa origem pode ser explicada.

Escuto CDs de pop como os de Björk, Volta, e Wilco, Sky Blue Sky. O primeiro é pretensioso demais; o segundo, bonitinho demais. O novo do White Stripes, Icky Thump, é melhor do que esses, embora não tão bom quanto os anteriores da própria dupla, Elephant e Get behind me Satan, porque menos surpreendente. Mas me pergunto o que todos eles não dariam para compor uma só das grandes canções de McCartney... Do CD em homenagem a Ella Fitzgerald, que estaria com 90 anos, se pode dizer algo parecido: o que as cantoras que participam, como Natalie Cole, Diana Krall e Lizz Wright, não dariam para cantar com a clareza e beleza de Ella? É melhor eu parar por aqui, senão vou ficar igual ao Ruy Castro de Tempestade de Ritmos (Companhia das Letras), sua nova coletânea, que destaca o jazz e a canção americana, e para quem a era de ouro acabou quando os Beatles lançaram She Loves You em 1962.

Concordo com Ruy quando diz que as três grandes músicas populares são a americana, a brasileira e a cubana. Para não dizer que não falei desta última, outro CD que vai estar entre os melhores do ano é Con el Permiso de Bola, de Gonzalo Rubalcaba e Francisco Céspedes, gravado no México, onde viveu e morreu o genial pianista, cantor e compositor cubano Bola de Nieve, cuja voz é utilizada na última faixa do disco, Drume Negrita, de Ernesto Grenet. Há também clássicos da canção hispano-americana como Vete de Mí, de Homero e Virgílio Expósito, e Ay, Amor!, de Ignacio Villa. Não chega a ser um dueto improvável e feliz como o de Bebo Valdés e Diego el Cigala em Lágrimas Negras, mas vale. E dá mais um sopro para rodar o mundo musical.

CADERNOS DO CINEMA

Críticos de cinema adoram filme em que quase nada acontece porque lhes dá a chance de encaixar qualquer interpretação... Cão sem Dono, de Beto Brant e Renato Ciasca, é um deles. Com sua lentidão à francesa (tipo Bresson ou irmãos Dardenne), um protagonista “sem rumo” (Júlio Andrade), tradutor de russo desempregado e maconheiro, e uma atriz linda (Tainá Muller), nem é preciso acontecer muita coisa - ou acontecer quatro cenas de sexo e duas revelações de doenças, além da amizade com um motoboy bondoso, um zelador artista e um cão sem nome - para parecer um discurso sobre a juventude perdida ou a classe média empobrecida. A maioria dos diálogos é constrangedoramente banal. No entanto, o despojamento do filme poderia ter se tornado algo mais significativo se se resolvesse em boas cenas e, principalmente, se não tivesse o final que tem, digno de sessão da tarde.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)

Há quem diga que não foi a corrupção que aumentou, mas a investigação sobre ela é que dá a impressão de que as coisas estão piores. Primeiro, não sei como podem ter certeza disso; se antes - supostamente - não havia informações disponíveis, como comparar agora? Segundo, vide o caso Renan. Não só ele já deveria ter renunciado (escrevo na quinta-feira) depois das primeiras denúncias - pois não conseguiu explicar por que pagava pensão da forma como pagava -, como também deve responder à Justiça, especialmente sobre os recibos suspeitos e os negócios escusos com seu valorizadíssimo gado, e não apenas a uma comissão de ética no Parlamento. Se as punições com o devido respaldo jurídico continuarem inexistentes - se sujeitos como Waldomiro, Valério, Delúbio, Zuleido e Morelli continuarem livres como urubus -, todo esse auê de polícias e CPIs só poderá ter efeito depressivo.

POR QUE NÃO ME UFANO (2)

Guido Mantega ficou com inveja de Marta Suplicy e disse que a crise aérea é resultado do crescimento da economia, pelo aumento do número de passageiros. Lembrou Paulo Maluf, ex-inimigo do PT, dizendo que o trânsito em São Paulo é “sinal de progresso”. Pior: lembrou o marido que põe a culpa no sofá...

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