Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 20, 2007

Lula laico JOÃO UBALDO RIBEIRO

Nos dias que passaram, assistimos ao presidente se fartar de usar uma palavra que parece que ele não conhecia antes e está tratando como um brinquedo novo. Brinquedo esse do qual ele se julga mais do que merecedor, neste começo de ano já não tão começo assim e neste começo de segundo mandato tampouco tão recentinho assim.

Sim, porque o presidente que temos visto nas aparições públicas se porta como se não nos esperassem problemas graves pela frente e como se ele fosse um timoneiro de enorme perícia e grandes realizações, a navegar num mar de prosperidade .

Desculpando-me por não ir nessa, ouso dizer que não conheço grande realização nenhuma desse governo, notadamente nas reformas de que só faz falar. Daria muito trabalho e resistência, mas foi o que ele prometeu e não seria impossível cumprir, ao menos em parte. Somente uma delas, se bem feita, seria uma grande realização.

Mas a grande realização, no ver dele, é o Bolsa Família, que, no ver de outros, é um programa assistencialista, clientelista, nocivo e eleitoreiro.

Ele o chama de “programa social” e eu não chamo nem de obra de caridade, chamo de demagogia senhoradecaridade mesmo.

Tivemos a visita de Bento XVI e ele, com a alegria de quem paga (com nosso dinheiro e dos próprios “beneficiados”) pelo apoio popular e conta com ele, parecia felicíssimo e aproveitou para fazer várias declarações em que usou a nova palavra, que adicionou às dezenas que já domina.

Era laico para lá, laico para cá, tudo mostrando que ele é presidente de todos os brasileiros (embora, pessoalmente, eu finja que não, quando estou em casa, tendo devaneios otimistas) e não somente dos católicos, como mostra sua atitude a respeito do aborto. Pessoalmente é contra, mas o Estado é laico e não pode aliarse à igreja ou seita nenhuma.

Tratou-se de um belo espetáculo de postura política. Receber bem o Papa foi, naturalmente, correto, mas estava claro que o presidente pretendia mostrar a todo mundo que tomara as atitudes de um chefe de Estado laico, tanto assim que, não sei se vocês notaram, limitou-se a cutucar o companheiro Papa para apresentar um ou outro ou para qualquer finalidade semelhante, mas, como vimos, não houve beija-mão. Bem, perguntarão vocês, por que observei esse fato? Seguramente, devo estar à beira de fazer algum comentário gerado pela má vontade e manchado por incoerência.

Sim, porque, como eu mesmo já disse, o presidente tinha de mostrar que é chefe de um Estado laico até o fim e não foi isso o que ele fez, até sendo um tantinho grosso e não indo acompanhar o visitante (o Papa, além de Papa, é também chefe de Estado) à sua despedida? Beijar a mão de alguém certamente não é gesto apropriado para quem quer mostrar isenção. Neste caso, como também já disse, havia a delicada questão do aborto, onde a atitude de magistrado tomada pelo presidente talvez fosse completamente desfigurada, se ele beijasse a mão do Papa, como é costume dos católicos que são apresentados a Sua Santidade e sonho dos católicos que não tiveram e nunca terão essa oportunidade.

Creio que o presidente não é evangélico.

Tampouco muçulmano, judeu ou budista. (Talvez, no fundo, seja mesmo é lulista, como muitos seguidores seus, alguns dos quais já deixaram de se dar comigo, em função de minhas insistentes blasfêmias e crimes de lesa-divindade.) Certamente foi criado como católico. Mas é também o presidente de muitos evangélicos e dos adeptos brasileiros de todas as outras religiões. Não era de se estranhar, portanto, que, assim à frente de um Estado laico, o presidente de todos não beijasse a mão de um líder religioso apenas da maioria, não de todos. E agora, aparentemente, eu venho com críticas a isso. Se ele tivesse dado o beija-mão, eu o criticaria pelas razões acima.

Como não deu, parece que vou criticálo também, porque já é conhecida minha “má vontade” em relação a ele.

Quer dizer, olhem aí o comportamento de certa imprensa, no caso a fração minúscula que me cabe. Se o presidente tivesse beijado a mão do Papa, seria criticado. Porque não beijou, também é criticado. Afinal, que quer esse pessoal? Quanto a esse pessoal em geral, só posso fazer suposições. De minha parte, digo que gostaria de menos gogó e mais ação. O governo, no mandato anterior, não fez nada, não cuidou da nossa infra-estrutura nem ostentou grandes iniciativas ou realizações, não fez nada mesmo, além de manter a situação e reagir a eventos inesperados ou fortuitos. Este mandato ainda não começou, com o tal PAC bradando pelo seu uso trocadilhado com o verbo empacar e nada de planos a projetos consistentes, a não ser, repito, no gogó e na repetição boba de “este país” isso e “este país” aquilo, “nunca na História” aqui e “em todo o mundo” ali, um festival de bazófias que parece nunca cessar.

E agora vem este colunista anti-Lula (não é verdade, não sou anti-Lula, tenho muitas coisas mais importantes contra as quais ser e ainda muitas mais a favor das quais ser) se queixando de uma besteira dessa, é muita falta do que falar. Discrepo, como diria meu finado confrade Houaiss. Discrepo porque existe não só a tradição católica de beijar a mão ou o anel do Papa. Beijar a mão de alguém é, universalmente, um gesto de respeito, veneração, admiração, até obediência.

A maioria de nós beijaria a mão de muito pouca gente, ou de ninguém.

Beijar a mão é tão simbólico e tão carregado de significados que até a expressão “beija-mão” foi criada em nossa língua por causa disso. Então por que, afinal, esta onda toda sobre Lula não ter beijado a mão do Papa? Eu explico. É que beijar a mão implica isso tudo que lembrei e há de ser o motivo pelo qual Lula não beijou a mão do Papa. Mas beijou com muito gosto a do dr. Jader Barbalho, não foi? Pois é.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.

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