Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, abril 23, 2007

Serra-Lula: a verdade

Serra-Lula: a verdade involuntária do exagero voluntário
from VEJA on-line: Blog | Reinaldo Azevedo by Reinaldo Azevedo
Ao analisar Casablanca, o ensaísta e escritor Umberto Eco teve uma sacada muito interessante. Viu tantos clichês no filme, que concluiu que ele comovia por isso. Vale dizer: o excesso acaba tendo uma função, vá lá, saneadora. Aconteceu isso, nesse fim de semana, com a tal “aproximação” de José Serra e Lula. Carlos Marchi escreveu uma matéria no Estadão que fez algum barulho. Matéria pequenina, mas bem grande se o que se prevê ali acontecer.

Marchi não é do tipo que sai inventando fontes ou fazendo prestidigitação em vez de jornalismo. Não duvido de que tenha ouvido algumas “fontes”. Como sempre acontece nesses casos, as que dizem as coisas mais interessantes só falam em off, isto é, sob o compromisso de que seus respectivos nomes não sejam revelados. Habitualmente cuidadoso, desta feita, acho que ele foi imprudente. Noto, de saída, que o principal personagem da reportagem, José Serra, não foi ouvido. E o repórter há de convir que não é difícil encontrá-lo.

Falei com o governador de São Paulo por telefone. As aspas estão neste texto. Os leitores vão avaliar o que ele disse. O texto do Estadão segue em vermelho, e as minhas observações, em azul.

Agora é oficial: o PSDB inteiro já sabe - e parte aprova, parte está desconfiada - que o governador José Serra cumpre uma estratégia ao se aproximar do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT. Serra constrói pontes de aproximação sonhando em ser o candidato do PSDB à Presidência com o apoio de Lula e, para tanto, está disposto a aceitar um acordo para ceder a Prefeitura de São Paulo aos antigos adversários, disse ao Estado um seu fiel aliado.
O que quer dizer uma coisa “oficial” no partido? Trata-se de uma decisão tomada pela direção? É claro que não. Imaginem se, faltando três anos e meio para a eleição, sem que se saibam nem mesmo quais serão as regras vigentes no pleito de 2010, um político, Serra ou qualquer outro, iria decidir ser “o candidato de Lula”. Essa afirmação do lead desconstrói a base histórica sobre a qual se firmou o PT: na oposição ao PSDB, o seu real e mais importante adversário na política.
Dissesse Marchi que Serra gostaria de não ter a hostilidade de Lula, vá lá. Eu posso até ficar em dúvida. Embora, mesmo assim, isso suponha que se terá, em 2010, um Lula com a popularidade de 2007, o que eu duvido. Menos de 24 horas depois de se encontrar com Tasso Jereissati, presidente nacional do PSDB, o Apedeuta atribuiu a governos passados — falava de FHC — nada menos do que a culpa pela violência urbana no país. Alguém realmente acredita que um acordo PSDB-PT seria possível contra a vontade de FHC ou mesmo do ex-governador Geraldo Alckmin? Fosse Serra o candidato de Lula, qual seria a força de oposição no país?
O cenário não faz sentido. Quem acabou de se encontrar com Lula é Tasso Jereissati, quase ao mesmo tempo em que a matéria era publicada no Estadão. Tasso já deixou claro num programa que ele não sabe se seu candidato será ou não um cearense — Ciro Gomes, este, sim, um aliado de Lula. Alguém imagina Lula, Serra e Ciro num grande frentão? Alguém imagina Lula ao lado de Serra e Ciro contra Lula? Tenham paciência!

As primeiras conversas revelaram que o PT quer mais: para dar a Serra a Presidência de mão beijada, os petistas querem a Prefeitura de São Paulo e o próprio governo paulista em 2010, sendo que este último poderia, se necessário, acomodar o próprio Lula, enquanto espera por 2014 ou 2015. Esse cenário, além de revolucionar as perspectivas políticas para a sucessão presidencial, pode dar a Serra a condição excepcional de ser um candidato de consenso em 2010.
Para que os petistas dessem a Serra a Presidência “de mão beijada”, convenham, seria preciso que o PT tivesse uma alternativa boa, forte: dá-se algo “de mão beijada” quando se tem o que dar, certo? Cadê o ativo petista? E é neste ponto que vem Umberto Eco. São de tal sorte absurdas as duas hipóteses aventadas para que o “presente” fosse dado, que chego a estranhar que Marchi tenha caído na conversa. Vejam só:
- Em, no máximo, um ano, o PSDB já terá de ter escolhido o seu candidato à Prefeitura de São Paulo. Haja ou não um acordo com Kassab, seja Geraldo Alckmin o candidato ou não, tal decisão já terá sido tomada. Entendam: o suposto acordo de Serra com Lula teria de se dar em 2008, não em 2010. Quer dizer que o PSDB assistia passivamente a essa movimentação, é isso? E passaria os dois anos seguintes apoiando o governo Lula?
- A hipótese acima é de um absurdo extremo, mas não tão absurda quanto a suposição de que Lula deixaria a Presidência da República com José Alencar para... disputar o governo do Estado!!! Francamente... Ainda que Serra fosse maluco o bastante para fazer um acordo com Lula, alguém acha esse caminho minimamente viável para Lula? Reitero: ele teria de deixar a Presidência da República para se candidatar aos Bandeirantes. E sem a certeza de ganhar. Ah, sim: concorreria com o apoio do PSDB? Com a devida vênia, trata-se da coisa mais absurda que li nos últimos tempos. Tão absurda, que só posso atribuir tal hipótese à ingenuidade.

Em janeiro, quando tomaram posse o presidente e os novos governadores, ninguém apostaria que apenas quatro meses depois Serra se situaria como um interlocutor privilegiado de Lula e do governo. Até então, o governador Aécio Neves (MG) era tido como o melhor amigo do presidente no PSDB. Cenários traçados até então sugeriam que Aécio poderia deixar o PSDB para ser candidato em 2010 com o possível apoio de Lula.
Considerando que Lula tem 65% de popularidade, essa poderia ser uma "notícia", digamos, positiva para Serra. Considerando, no entanto, que um candidato do PSDB teria de se tornar viável antes no partido, eu diria que essa "notícia" é bastante positiva para Aécio Neves. Considerando a verdade dos fatos, eu afirmo que nem Serra nem Aécio confrontam o PT como deveriam, o que é um erro dos dois. Não precisariam se chocar contra Lula necessariamente. Eles não serão tontos de bater de frente contra quem tem esse prestígio popular. Deveriam é comprar mais briga com o PT e sua governança.

Nesses quatro meses, Serra se dedicou a construir pontes com Lula e o PT. Primeiro, mandou os aliados apoiarem o petista Arlindo Chinaglia (SP) na eleição para presidente da Câmara. Serra tem como interlocutores no plano federal a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) - os dois têm trocado constantes elogios -, Chinaglia e o deputado Cândido Vaccarezza (SP), ligado à ministra Marta Suplicy (Turismo).
Se eu ligasse para Serra e perguntasse se ele está se articulando com o PT, acho que ele negaria. Fiz outra coisa: perguntei quantas conversas privadas teve até agora com Chinaglia: “Uma”. Sendo o deputado presidente da Câmara, é até razoável. “E com Vacarezza?” Ele responde: “Nenhuma! Se encontrar na rua ou num restaurante, não conseguiria reconhecê-lo. Nunca falei com ele. Sei quem é porque leio nos jornais” E Dilma? “Quando falei com ela, discuti assuntos de interesse do Estado de São Paulo. Não sei por que não me perguntaram nada a respeito dessas coisas.Você acha mesmo que eu trataria de candidatura à Presidência da República no terceiro ou quatro mês do segundo mandato de Lula? Podem até não gostar do que eu penso, mas daí a acharem que sou bobo, convenha, vai uma diferença”. Lembrei a Serra que a matéria do Estadão atribui as hipóteses a um seu “fiel aliado”. Ele ironizou: “É, imagine se tivessem falado com um fiel adversário... Se um suposto aliado diz que estou planejando entregar a Prefeitura de São Paulo e o governo do Estado ao PT, o que você acha que um inimigo diria, Reinaldo? Aliás, por que será que o PT, então, não facilita as coisas para o governo?"

Estando próximo do PT, Serra impede que Aécio evolua no antigo projeto de ter, em 2010, o apoio de Lula. Em Minas, Aécio tem acompanhado em absoluto silêncio os movimentos de Serra e orientou seus aliados a não se manifestarem. Como principal alegação, tem dito que é muito cedo para decidir a eleição de 2010.
Opa! Não entendi. O apoio de Lula seria, então, definidor do candidato do PSDB em 2010, ou estamos falando de partidos distintos? Pessoalmente, acho razoável que o candidato tucano NÃO TENHA o apoio de Lula. Até porque acho que, por enquanto, o Apedeuta analisa as circunstâncias para ser o candidato de si mesmo — e, por isso, embora apóie o fim da reeleição, eu tenha pela proposta bem menos entusiasmo do que Serra e Aécio, por exemplo.
Guardando-se Lula para voltar em 2014, acho impossível que não tente fazer o sucessor. Essa conversa de que preferiria ser sucedido por um oposicionista é cálculo feito à matroca. Lula não é burro. Tentará, sim, ter um candidato. Quem? Qualquer que seja o arranjo, escrevo isso há muito tempo, acho que a solução passa por um acordo com Ciro Gomes, o que, de saída, exclui Serra e boa parte do PSDB.
Acho correto que governadores busquem ter uma relação cordial e institucional com o governo federal. A hostilidade aberta, numa quase ditadura da União como a que vigora por aqui (não somos exatamente uma federação, como os EUA) seria prejudicial à própria população do estado. Mas é fato que falta uma visão de oposição em assuntos relevantes, que oponha líderes como Serra e Aécio ao PT. Nenhum dos dois, por exemplo, teve a coragem, a clareza ou a disposição para, por exemplo, comprar a briga em favor da Emenda 3, contra esse corporativismo vagabundo da República Sindical. Há muito a ser feito. Mas cuidado com os delírios.
E digam aí: enquanto Serra estaria tramando todo esse tosco maquiavelismo, o PSDB aceitaria, sem resistência, o PT na Prefeitura de São Paulo e no governo do Estado? Tudo se resumiria a uma troca de cadeiras: Lula iria para o Palácio dos Bandeirantes, e Serra, para o do Planalto, quase como dois senhores feudais decidindo o destino do reino.
Acho que, depois dessa reportagem, o suposto acordo Lula-Serra ganhou a sua real dimensão. “E se o governador mentiu pra você, Reinaldo, e só o está usando, como os políticos costumam fazer com jornalistas?” Bem, se ele mentiu pra mim, então restaria como verdade que:
- ele tentará entregar a Prefeitura para o PT, e o PSDB aplaudirá;
- ele tentará entregar o governo de SP para o PT, e o PSDB aplaudirá;
- ele tentará ser candidato à Presidência da República com o apoio de Lula. Ah, claro: e também o apoio de FHC, Alckmin, Aécio, Tasso, Ciro...
- Lula renunciaria à Presidência para ser candidato a governador — com apoio tucano, suponho.
Sinceramente, parece que se exagerou de tal sorte na fantasia do “acordo” Serra-Lula, que a verdade brotou. Ainda que involuntariamente. Trata-se de um delírio.

Não sei quem é este tal “aliado” de Serra que falou com o Estadão. Mas vejam só: o cara é tão aliado, mas tããão aliado, que o governador estaria fazendo um jogo secreto, e ele vai e entrega todo o serviço para Marchi. Até Júlio César tinha “aliados” mais fiéis. Brutus, afinal, ao menos imaginava estar fazendo um bem para a República. Esse "aliado", pelo visto, quer fazer um bem apenas para si mesmo.

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