Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, março 26, 2007

Uma sociedade doente- Luiz Carlos Bresser-Pereira



Artigo
Folha de S. Paulo
26/3/2007

A sociedade está em crise e mais dividida porque não tem um diagnóstico claro do próprio país

AFINAL, É a sociedade brasileira ou é o Estado brasileiro que está doente? Se essa pergunta fosse incluída em uma pesquisa de opinião pública, não tenho dúvida de que a segunda alternativa alcançaria ampla maioria, porque esse é o senso comum. Hoje, tornou-se uma prática de quase todos culpar o Estado pelos nossos males. Da direita, porque sonha com o Estado mínimo e critica a alta carga tributária; da esquerda, porque almeja o Estado justo, da classe média e dos empresários industriais, porque se sentem, com razão, os grandes perdedores nesse jogo de soma zero que é hoje o Brasil quase estagnado.
Todos têm alguma razão, mas há aqui um equívoco fundamental: quem está realmente doente hoje no Brasil é a sociedade brasileira. Hoje, essa sociedade está em crise e mais dividida do que em outros momentos de sua história porque não tem um diagnóstico claro do próprio país, porque não sabe quais políticas seu Estado deve seguir nem quais objetivos podem ser alcançados de forma realista, e, principalmente, porque, na sua própria confusão, está se tornando consciente da própria crise.
Quando a sociedade está desorientada, como ocorre no momento, uma solução simples é confundir o Estado com o governo, e afirmar que o governo (os políticos e altos funcionários que dirigem o Estado) não está à altura das suas responsabilidades, tanto do ponto de vista da competência como do ponto de vista ético. E se essa afirmação é geralmente verdadeira nas democracias modernas, no Brasil ela é especialmente verdadeira hoje, quando o governo enfrenta grave crise de legitimidade, dados os escândalos políticos e o mau desempenho econômico. Dessa forma, se ignorássemos que o Estado não é o governo, e, principalmente, se esquecêssemos de que o Estado e o governo são a expressão da sociedade, o problema estaria resolvido.
Lembrados esses fatos, é preciso saber por que a sociedade brasileira está dividida, desorientada e em crise. Sugiro que isso ocorre porque os dois grandes consensos aos quais ela chegou se esvaziaram. O consenso dos anos 70 pôs de lado a idéia de nação, assumiu como pressuposto que o desenvolvimento econômico estava assegurado, e colocou todas as suas energias na luta pela democracia e a justiça social. Esse consenso foi parcialmente bem-sucedido em relação a seus objetivos, mas o pressuposto de que o crescimento estava assegurado mostrou-se falso.
Em seguida, o quase-consenso dos anos 90 foi o de que uma estratégia dependente, baseada na liberalização desordenada e na busca de poupança externa, devolveria ao país o crescimento perdido nos anos 80. Desta vez não apenas se subestimava, mas se ignorava a idéia de nação, e não foi surpreendente que o objetivo da retomada do desenvolvimento econômico não haja sido alcançado, apesar das condições extremamente favoráveis da economia mundial.
Para a sociedade brasileira está claro hoje que democracia e justiça social são valores fundamentais, mas que só podem ser aprofundados se houver desenvolvimento econômico. Não está claro ainda, porém, que o desenvolvimento econômico no quadro mais amplo da globalização é impossível se a sociedade não ganhar solidariedade na competição internacional, voltar a se constituir como nação, e usar seu Estado como seu instrumento de ação coletiva.
O Estado, seja enquanto sistema constitucional legal, seja enquanto organização que assegura os valores e as normas expressos nesse sistema, não é outra coisa senão esse instrumento. Embora haja uma insistente tese da autonomia relativa dos seus governantes em relação à sociedade, essa autonomia só existe quando a sociedade se desorienta; nas demais ocasiões, o Estado exprimirá o sistema de poderes e os consensos da sociedade.
Não nos enganemos, portanto, sobre onde se encontra o grande problema do Brasil hoje. Ou a sociedade brasileira, que foi capaz de se constituir em sociedade civil para lutar pela democracia e pela justiça social, volta agora a se constituir como nação para competir internacionalmente e retomar o desenvolvimento econômico, ou o Estado e seu governo continuarão tão desorientados e divididos quanto ela própria.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 72, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de "As Revoluções Utópicas dos Anos 60".
Internet:
www.bresserpereira.org.br

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