Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 27, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


Pac, pac, pac, pac

O virtual e o real, nos mundos encantados
da moda e dos planos do governo Lula

E lá veio o governo Lula – pac, pac, pac, pac – com novo número de ilusionismo. Na mesma semana – pac, pac, pac,
pac –, lá vieram as meninas da São Paulo Fashion Week com seu mundo encantado. Esse último "pac, pac, pac, pac" vai em honra do andar das moças na passarela. É um andar esquisito, em que os pés avançam no rumo contrário à posição que ocupam no corpo, o pé esquerdo em direção à direita, e o direito em direção à esquerda. O perigo de os pés se embaraçarem, o esquerdo enlaçando-se no direito e o direito no esquerdo, como cipós que se confundem ao cair da árvore, é permanente. Ainda mais que o avanço se dá no passo apressado de quem não tem um minuto a perder. Calculada com um pouco menos de perícia, a manobra pode resultar num movimento exótico como o da famosa foto de Jânio Quadros, um pé em desacordo radical e irreparável com o outro, o dono dos pés equilibrando-se fragilmente sobre estruturas fora de controle. No limite, pode provocar tombos. É um espanto, um milagre do santo protetor das modelos, que não ocorram tombos, muitos tombos, nos desfiles de moda.

No fim de cada desfile, as modelos avançam em tropel – pac, pac, pac, pac – pela passarela, todas agora reunidas. É o fecho de ouro, a apoteose, e a palavra "tropel" não está aí por acaso. O passo em marcha batida, que provoca um andar aos pulinhos, e cujo modelo no reino animal é o trote dos cavalos, multiplica-se agora num tropel de cavalgada. É a carga da cavalaria ligeira. Num ambiente que não fosse a passarela – numa rua, num parque, numa praia –, uma investida dessa magnitude, vinda em direção contrária, provocaria pânico. Um esbarrão, e a vítima sairá, para usar a expressão de Nelson Rodrigues, com arranques de cão atropelado. A situação é agravada pela fisionomia das moças – fechada, ameaçadora. Elas estão sempre bravas, muito bravas.

Deve haver alguma razão para isso. Presume-se que os inventores dos desfiles de moda sabiam o que estavam fazendo. Mas, para um leigo, o mais intrigante aspecto dessa atividade é a fisionomia imposta às moças. Elas não podem sorrir. A testa e os maxilares se congelam em pétrea mensagem de desprezo. Dos olhos escapam chispas de ódio. Tão novinhas, e já tão mal-encaradas. Elas não gostam do que estão fazendo? Estão sendo vilmente forçadas por pessoas que nos bastidores as empurram, aos pontapés e chicotadas, a uma função que só lhes causa desgosto? As caras fechadas são tão mais chocantes quanto prevalece, no senso comum, a idéia de que o mundo da moda é um mundo leve, feito de requintes e prazeres.

O desfile não são só as moças. Há as idéias, os temas, assim como as escolas de samba têm os enredos. Uma das coleções expostas na semana passada em São Paulo se dizia inspirada em "fragmentos do tempo, especialmente o futuro". Outra se apresentou como "Amazon Guardians: uma brigada urbana contra a degradação do meio ambiente". Como se vê, variou-se da filosófica especulação sobre os mistérios do tempo a uma bandeira como a da ecologia, nesse caso reforçada pela expressão em inglês, Amazon Guardians, no lugar de ordinários Guardiães da Amazônia. Outra coleção se apresentou com o tema "A força da natureza como fuga ao caos urbano. O escapismo. A força espiritual". A imaginação – ou "criatividade", como se diz, com abusada desconsideração por essa maltratada e malversada palavra – tem seu modelo na imaginação dos carnavalescos. E por falar em carnaval...

O governo Lula – pac, pac, pac, pac – armou para o anúncio de seu Programa de Aceleração do Crescimento o clima de superprodução tão a seu gosto. Todos os governadores foram convocados, quase todos compareceram, mais os ministros e os líderes do Congresso e dos partidos. Foi o ponto culminante de um febril trabalho de alfaiataria nos bastidores do governo. Nas semanas anteriores, vasculharam-se armários e gavetas das estatais e dos ministérios, juntou-se tudo o que havia ali em matéria de projetos, acrescentaram-se alguns (poucos) novos e pronto – a soma, embalada como se desde a origem se constituísse num conjunto harmônico, foi apresentada como a coleção de verão do governo.

Vai dar certo? O PAC do governo é igual ao "pac, pac" das passarelas. Entre os comentaristas da moda, uma palavra muito usada é "aposta". Um estilista aposta nas saias curtas. Outro aposta no romantismo. Houve um, nos desfiles da semana passada, que apostou em vestidos inspirados em sacos de lixo. São exercícios ao léu. Se pegar, pegou. No PAC, igualmente, o que pegar pegou. Se tal ou qual projeto conseguir se transformar em realidade, melhor. O próprio PAC, em si mesmo, é um balão marqueteiro jogado ao léu. Para transpor-se do mundo virtual para o real, tem pela frente um caminho tão cheio de incógnitas quanto, para transpor-se das passarelas para as ruas, o têm o vestido inspirado nos sacos de lixo ou (outra peça apresentada na semana passada) o véu inspirado na burca muçulmana para cobrir o rosto das mulheres.

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