Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 28, 2007

FERREIRA GULLAR Pânico no jardim

Convenceu-se de que o desequilíbrio ecológico fizera surgir ali um ser vegetal demoníaco

SAIU DO elevador, no térreo, e tomou o corredor em direção à porta do edifício. Era quase meia-noite. Chegara ao apartamento dela às 19 horas em ponto para uma noite de amor. Ela estava deitada na cama à sua espera, vestindo uma camisola transparente, curta, a porta do quarto apenas encostada. A luz era pouca, mas suficiente para ver seu rosto branco, seus olhos negros, seu sorriso cúmplice. "Para batalhas de amor, campos de plumas"; uma vertigem, de que ressurgira molhado de felicidade. Deixou-se ficar, quase desmaiado, enquanto a realidade ia aos poucos se recompondo em volta: as paredes, o armário, o espelho, as roupas na cadeira.
O corredor vazio o deixou passar em silêncio até alcançar a porta que dá para o jardim à frente do prédio. O carro estava estacionado, lá fora, à sua espera. Mal abriu a porta, foi agredido pelo cheiro de jasmim.
Meia-noite é a hora em que os jasmineiros atacam com maior violência, deduziu, já que, tempos atrás, ao atravessar mais cedo o jardim, o ataque tinha sido menos violento, como também, antes, numa tarde muito clara, quando foi menos feroz ainda. A conclusão inevitável era de que os jasmineiros são mais agressivos no escuro. Era, além do mais, sexta-feira, e não domingo e, aos domingos, parece, os jasmineiros não atacam com a mesma ferocidade que nos dias de semana.
Assim, foi numa sexta-feira, precisamente às 23 horas e 55 minutos, que transpôs o portão, abrindo a pesada porta de ferro batido e vidro que separa o hall do jardim. A porta não estava trancada, pois assim a deixa o porteiro do edifício até a meia-noite em ponto. Nesse exato instante, então, fecha-a com chave e, por isso, procura sempre sair antes da meia-noite, para não ter que chamá-lo e sentir-lhe o olhar irritado e a má vontade de ter de levantar-se para lhe abrir a porta. Como não reside ali, não tem a chave.
Desse modo, ao transpor o limiar, sentiu o primeiro alarme aromático que vinha daquele arbusto à sua esquerda, metros adiante, e recuou. Fechou de novo a pesada porta de ferro e vidro, e pensou em ligar para Clarice Lispector. Naquele momento, olhou para o mostrador do seu Seiko 5 stainless steel, viu que marcava um minuto para a meia-noite, momento em que o porteiro já se teria levantado da cadeira na portaria do prédio, ali ao lado, para vir trancar a porta.
Hesitou: saio ou não saio? Enfrento ou não enfrento a invisível ameaça vegetal? Sua hesitação se justificava, uma vez que, na semana anterior, ao atravessar inadvertidamente o jardim, fora envolvido pela sedução perfumosa do jasmineiro e, inebriado, num impulso incontrolável, arrancara do arbusto um cacho de flores e aspirara fundamente seu aroma. Mas se dera mal, pois aquele perfume, aparentemente suave, ocultava, como um punhal aromático, um odor selvagem que lesionara-lhe as narinas e o envenenara instantaneamente.
O veneno não tinha efeito imediato, mas era suficientemente poderoso para turvar-lhe a consciência e aprisioná-lo em seus grilhões. Só que talvez não caiba falar de grilhões, em se tratando de algo tão impalpável como são os aromas: sim, um gás, era de fato um gás venenoso que o arbusto produzia e guardava naquelas cápsulas brancas, que, à primeira vista, pareciam flores.
Uma artimanha insidiosa de que fora vítima naquela mencionada noite e de que só se livrara porque, embora cambaleando, conseguira chegar ao carro, parado em frente ao edifício, abrira o porta-luvas e pegara o spray antialérgico, graças ao qual evitara que o inchaço da mucosa nasal, cortando-lhe a respiração, o asfixiasse.
Como o porteiro já se aproximasse, decidiu transpor definitivamente o portão, mas, antes de descer os degraus, fixou o olhar temeroso no vulto embuçado do jasmineiro que, alguns passos adiante, soltava no ar o seu veneno. E, naquele exato momento, entendeu o que se passara nos últimos meses, já que até então não havia ali nenhum jasmineiro; isto é, havia, sim, um arbusto, semelhante àquele, mas que nunca exalara perfume algum. Convenceu-se de que, como conseqüência do desequilíbrio ecológico, surgira ali um ser vegetal demoníaco, que ocupara o antigo arbusto, embutira-se nele e dera início a sua faina homicida.
Foi então que sacou do celular e discou para Clarice Lispector, pois, com ela, pela primeira vez, falara do risco que representavam os jasmineiros, muitos anos antes de defrontar-se com esse que o ameaçava, agora, num jardim da rua Senador Eusébio, no Flamengo. Mas o telefone chamou, chamou, chamou e ninguém atendeu.

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