Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Você’ tem muito a aprender


Artigo - Luiz Weis
O Estado de S. Paulo
27/12/2006

A revista Time escolheu “Você” a Pessoa do Ano de 2006. Você habita a constelação de comunidades virtuais que reúne os mais ativos dos 500 milhões de usuários da internet no mundo. Você está entre os participantes de sites de relacionamento como o Orkut, entre os freqüentadores das colossais redes de interação como o MySpace e o YouTube - se não estiver também entre os 60 milhões de blogueiros espalhados pelo globo.

A Time (5,2 milhões de exemplares por semana) transborda de superlativos ao cantar a revolução dentro da revolução pontocom - “muitos arrancando o poder dos poucos e se ajudando uns aos outros de graça, o que não apenas mudará o mundo, mas a maneira como o mundo muda”.

A revista se deslumbra com “a explosão de produtividade e de inovação que mal começa, à medida que milhões de mentes de outro modo fadadas a naufragar na obscuridade são puxadas para a economia intelectual global”.

Mas, num lampejo de lucidez e ironia, concede que seria errado “romantizar tudo isso mais que o estritamente necessário”. Reconhece que a impropriamente chamada web 2.0 (como se fosse uma nova tecnologia, e não um nova forma de usá-la) tem um lado tenebroso.

“Traz à tona a estupidez das multidões, assim como a sua sabedoria”, diz a Time. “Alguns dos comentários no YouTube”, exemplifica, “são de fazer chorar pelo futuro da humanidade, já por causa da ortografia, para não falar no que contêm de obsceno e de ódio em estado puro”.
Feita a ressalva, a Pessoa do Ano “tomou as rédeas da mídia global, fundou e definiu a nova democracia digital, trabalha sem remuneração e derrota os profissionais no campo deles”.

Esse campo é o da imprensa. Ou melhor, da incessantemente apedrejada “mídia convencional”, a mainstream media que apanha da esquerda e da direita enquanto é acusada de se tornar a galope uma tediosa irrelevância para as novas gerações conectadas.

O novo jornalismo-cidadão (o próprio termo tem o som de uma clarinada libertária) seria a desforra da sociedade online contra um sistema de produção e distribuição de fatos e idéias carcomido por uma variedade de doenças insidiosas, crônicas e incuráveis. A saber, a subordinação da mídia aos grandes interesses econômicos e políticos; o pensamento único imposto pela crescente cartelização do setor; a redução da informação a entretenimento (o infoteinment); a presunção dos jornalistas donos-da-verdade e a sua quebradiça ética profissional.

Nenhum desses males é fictício e todos contribuem para a erosão da credibilidade da imprensa, acompanhada da profecia de que a morte do jornal é apenas uma questão de tempo (como certa vez um diário brasileiro intitulou uma notícia sobre o estado de saúde do líder iugoslavo Josip Broz Tito).

Os jornalistas-cidadãos - assim se autodenominam, entre outros, 4 milhões dos 12 milhões de blogueiros americanos - ganharam o dia quando a revista britânica The Economist, de 163 anos, perguntou retoricamente na capa, meses atrás: Quem matou o jornal?

“É só uma questão de tempo”, pontificou a revista, sem fugir do clichê, antes que os diários “comecem a fechar em grande escala”. E resumiu, com uma metáfora, o divórcio entre a imprensa voltada para as grandes questões públicas e a preferência da maioria dos leitores por informações pedestres: “As pessoas querem que o seu jornal lhes diga como enriquecer e o que podem fazer esta noite.”
É de esperar que esse não seja bem o Santo Graal do jornalismo-cidadão. Afinal, o catecismo dos seus praticantes - pelo menos como o interpretou o repórter de mídia da New Yorker, Nicholas Lemann, no artigo Jornalismo sem jornalistas - transpira propósitos sociais mais elevados.

“Amadores supostamente inspirados”, ou assim se imaginam, “descobrem o que acontece ali onde vivem e trabalham, e nos oferecem um quadro do mundo mais completo e rico do que o proporcionado pelas organizações noticiosas tradicionais, ao mesmo tempo que nos poupam da pompa e do exibicionismo que os jornalistas freqüentemente ostentam.”

Mas isso que está na sua vitrine é o que realmente eles têm a transmitir? Se o tiverem, na escala sugerida pelos entusiastas dessa espécie de imprensa sem agrotóxicos, a parte que lhes cabe no prêmio com que a Time consagrou os internautas militantes seria não apenas justificada, mas bem-vinda.

Do contrário, como ousou escrever o repórter John Markoff, do New York Times, as novas tecnologias de informação terão conseguido destruir velhos padrões sem criar algo melhor para pôr no seu lugar.

Os blogueiros americanos reagiram a Markoff com a agressividade que em toda parte contamina o debate público na internet - o que sugere, incidentalmente, que o meio incentiva o “bateu, levou”. Mas não conseguiram desmenti-lo.

A verdade é que ainda não deu tempo - se é que o problema é esse - para que criasse raízes na virtualidade uma cultura jornalística que permita aos seus jornalistas-em-exercício competir efetivamente com a achincalhada mídia tradicional.
Essa é a ambição assumida ao menos pelos mais exaltados (ou mais otimistas) entre eles: derrotar os profissionais no campo deles. Paradoxalmente, no entanto, é improvável que o consigam “sem a mediação dos profissionais”, nas palavras do jornalista da New Yorker, escolados nas disciplinas do ofício e sujeitos aos sistemas de certificação das informações que divulgam.

A internet tem tudo para ser o melhor meio já concebido para dar notícias, mas o mundo está cheio de pessoas que devem se achar o próprio jornalista-cidadão que a Time põe nas nuvens, apenas porque têm um computador e uma conexão de banda larga.

Só quem nunca deu um clique de mouse duvidará de que a rede tende a acabar com a embolorada distinção entre produtores e consumidores de informação. Mas durante muito tempo ainda o melhor jornalismo disponível na internet será o que produzirem os jornalistas da velha escola.

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