Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Demétrio Magnoli Leis da tortura


Artigo -
O Globo
28/12/2006

Na China, torturadores a serviço de Mao Tsé-tung retalhavam a facadas partes do corpo de suas vítimas, até provocar a morte. Nas prisões offshore dos EUA de George W. Bush, suspeitos de terrorismo sofrem interrogatórios nos quais são mantidos em posições dolorosas por longos períodos, sujeitos à privação extrema de sono e expostos a sons excruciantes. O que são pior: as torturas da China maoísta ou as técnicas cruéis utilizadas pelos serviços secretos americanos?

O segundo é pior, na visão de "Torture: Does it make us safer? Is it ever ok?", obra coletiva editada pela ONG Human Rights Watch. Maoístas torturavam na escuridão dos porões e negavam seus atos criminosos. Os EUA de Bush se engajaram na produção de regras de tortura "legal", sob a cobertura das necessidades de segurança do Estado, o que equivale a um atentado contra o edifício da lei civil erguido ao longo do século XX e apoiado em antigos alicerces filosóficos.

"Uma confissão deve ser espontânea, não extraída pela força. Você não se envergonhará se nenhuma prova emergir da tortura?" As palavras do papa Nicolau I, proferidas em 866 para repreender a igreja búlgara, evidenciavam a incapacidade da tortura de separar a verdade da mentira. O sistema da lei civil, ao rejeitar o valor absoluto atribuído à confissão, representou o reconhecimento definitivo dessa incapacidade.

A proibição de torturar prisioneiros de guerra foi consagrada pelo Código Lieber, as instruções de Lincoln às forças da União, de 1863. Nelas se encontram as sementes que frutificaram na Convenção Contra a Tortura, firmada sob o patrocínio da ONU em 1984, que bane o recurso estatal à tortura e a tratamentos cruéis, em qualquer situação. Inspirada por essa tradição, a Anistia Internacional definiu um dia a tortura como a forma de violência que os Estados nunca tentarão justificar e sempre negarão utilizar.

Tragicamente, Israel, ontem, e os EUA, hoje, provam que isso não é verdade. Presidida pelo juiz Moshe Landau, uma comissão examinou, em 1987, as denúncias de tortura formuladas contra oficiais do Shin Bet, a agência de segurança interna israelense. A Comissão Landau comprovou as denúncias, mas, baseando-se no clássico argumento da "bomba-relógio", celebrizado pelo cinema, decidiu admitir a "pressão física moderada" nos interrogatórios e se dedicou a estabelecer regras que a separassem da tortura.

Como era previsível, o argumento da "bomba-relógio" sofreu as interpretações convenientes ao Shin Bet e a tortura se institucionalizou, sob um aparato macabro de supervisão ministerial e fiscalização médica. Durante 12 anos, milhares de palestinos, muitos dos quais insuspeitos de terrorismo, conheceram tratamentos proibidos pela Convenção Contra a Tortura e pela legislação israelense. A máquina de supliciar só foi contida em 1999, por uma decisão histórica da Suprema Corte de Israel, que rejeitou o pretexto da "bomba-relógio" e declarou ilegais as técnicas violentas de interrogatório.

Dois anos mais tarde, porém, na seqüência dos atentados do 11 de setembro, os EUA desfraldaram novamente a bandeira da tortura legal. Com base num memorando elaborado no Ministério da Justiça, que redefinia a tortura no mais estrito sentido imaginável, uma série de documentos oficiais instruíram técnicas de interrogatório que são classificadas como tortura nos relatórios anuais sobre direitos humanos no mundo publicados pelo Departamento de Estado.

Nas ditaduras, a rotinização da tortura se baseia na transformação do prisioneiro em um corpo sem identidade pública, excluído da supervisão judicial. Na democracia americana, esse efeito só pode ser obtido por meio da produção prévia de um interdito legal. A iniciativa crucial foi adotada por Bush em 2001, com a fabricação da figura do "combatente inimigo ilegal".

O rótulo, desconhecido pelo direito internacional, cumpre as funções de circundar os tratados de proteção de prisioneiros de guerra e separar os cativos da esfera de ação da justiça americana. A Suprema Corte americana, que começou relutantemente a reconhecer os direitos humanos dos presos de Guantánamo, não teve ainda a decência de se pronunciar pela ilegalidade da figura jurídica inventada pelo presidente.

No fim do sexto ano do séc. XXI, a nação que liderou o mundo na proibição da tortura se converteu no único país que oficialmente tortura. É uma notícia e tanto para governos como os da China, Arábia Saudita, Síria, Egito, Coréia do Norte, Paquistão, Rússia, Iraque e Irã, que mantêm aparatos de tortura sistemática, mas clandestina. Todos eles são sócios ocultos da Doutrina Bush.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: magnoli@ajato.com.br

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