Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 29, 2006

RUBENS RICUPERO Anticlímax




Como outros países da AL, o Brasil assiste à conquista do poder por novos atores sociais, aqui por um operário


CHOCHA E sem emoção, a eleição contrastou com a eletricidade dos momentos altos das novelas do mensalão, das sanguessugas e outras obras-primas da dramaturgia policialesca nacional. O drama dos escândalos se afogou no anticlímax da comida barata, do salário mínimo razoável, da inflação baixa e da Bolsa Família generalizada, em reforço da tendência natural à reeleição.
Remexendo a cinza fria de campanha sem fogo, o que se pode deduzir dos resíduos? A extraordinária resiliência não só do presidente, como todos repetem, mas do seu partido, o que poucos destacam. Resiliência, diz o dicionário, é a propriedade de alguns corpos de retornar à forma original após passarem por uma deformação elástica.
A palavra se aplica primeiro no sentido do êxito eleitoral. Afirmava-se que o PT sairia devastado dos escândalos e sua bancada seria reduzida à expressão mais simples. Não foi o que se viu, nem no número de deputados nem na conquista de governos de Estados, alguns expressivos, só ou em alianças. Mesmo onde perdeu, não foi a debacle. Deslocar um governador e chegar ao segundo turno no Rio Grande do Sul não é de pouca monta.
Em parte, o PT recebeu o que transbordou da taça cheia do presidente, mas não foi só isso. Subestimou-se a capacidade de mobilização do único partido brasileiro com centenas de milhares de filiados pagantes. Os outros partidos, a rigor, não possuem militância, como se viu no processo de escolha do candidato da oposição. Não admira que se mostrassem incapazes de oferecer alternativa real e atraente ao eleitorado.
Mas os militantes não teriam resistido à desmoralização dos escândalos se não tivessem autêntica base social. Como outros países da América Latina, o Brasil assiste à conquista do poder político por novos atores sociais, aqui representados por um operário, ali por um índio aymará. Expressão da industrialização, e acima de tudo da urbanização rápida, a sociedade de massas só demorou a tornar-se democracia de massas porque os golpes militares e o anticomunismo da Guerra Fria retardaram o advento do sufrágio universal irrestrito.
Antes do parêntese da ditadura, o partido que mais crescia de 1946 a 1964 era o PTB de Getúlio Vargas e de João Goulart. Só não tornou-se força hegemônica indiscutível porque o golpe interrompeu-lhe a irresistível ascensão. Em mais de um aspecto, o PT é o herdeiro modernizado dessa tradição.
Não se trata mais, como na era Vargas ou no núcleo original petista do ABC, do operariado industrial do centro-sul, hoje declinante ou em via de tornar-se pequena classe média na renda e no comportamento eleitoral. A base do PT deslocou-se para o Norte e o Nordeste e para as massas das periferias das grandes cidades, na economia informal ou de serviços, subempregadas ou sem emprego. A expressão política desses novos atores é o PT, assim como as igrejas evangélicas são sua expressão religiosa.
Emanação de uma realidade social, o PT não vai ser destruído como força eleitoral pelas denúncias de corrupção. O PTB de Goulart e do peleguismo resistiu à campanha da UDN e Lacerda; o peronismo sobreviveu a décadas de esforços de erradicação, que incluíram até exposições das jóias e casacos de pele de Evita, com efeito contraproducente.
O que pode suceder é que o PT reproduza o destino do peronismo, que destruiu os partidos tradicionais, substituídos pela geléia geral de uma vaga hegemonia de seitas peronistas conflitantes, com muita fisiologia e pouca ideologia. Uma espécie de imenso PMDB, mais aguerrido e criminalizado pelos métodos mafiosos da política sindical de origem. No Brasil, não chegará talvez à hegemonia, mas pode manter o apelo eleitoral e acentuar a corrupção.
A não ser que retome o impulso para a autocrítica e purificação, a chamada "refundação" anunciada no início das denúncias. Logo abandonada devido ao temor de dividir o partido na campanha eleitoral, ela poderá ser a única saída para evitar a ruína definitiva. Não, como se diz, em termos eleitorais, mas o irremediável apodrecimento de sua força ideológica e do que acaso reste de seu antigo compromisso ético.

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