Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 29, 2006

VEJA LIVROS

O animal mais
estranho do mundo

Um saboroso ensaio do escritor
argentino Ricardo Piglia examina
a figura do leitor, esse excêntrico
que tem prazer cultivando a solidão


Jerônimo Teixeira


Duas Jovens Lendo, de Picasso: será que elas traem seus maridos?


Um livro intitulado O Último Leitor (tradução de Heloisa Jahn; Companhia das Letras; 184 páginas; 35,50 reais) pode sugerir um daqueles alertas sobre a morte da leitura, o fim da literatura e o declínio da civilização ocidental. Em obras como O Cânone Ocidental, o crítico americano Harold Bloom tem insistido – com muito brilho, diga-se – nesse tom catastrofista. O livro em questão, no entanto, é diferente. Ele afirma a vitalidade da leitura como uma das experiências mais estimulantes que um ser humano pode ter hoje. "Não dei esse título para lamentar o fim da leitura. O último leitor é, simplesmente, aquele que chega tarde", diz o autor, Ricardo Piglia – talvez o melhor escritor argentino em atividade hoje e um dos convidados para a Festa Literária Internacional de Parati deste ano. O leitor contemporâneo – você, que lê esta resenha, inclusive – de fato chega aos livros muito tarde, depois de séculos de tradição literária. Mas ele não perdeu a festa: pelo contrário, seu atraso é um desafio fascinante. Uma biblioteca virtualmente infinita abre-se à frente do recém-chegado.

Harold Bloom costuma dizer que o melhor que a literatura pode oferecer ao leitor é uma espécie de educação para a solidão, e nesse ponto Piglia coincide com o crítico americano. Segundo ele, o leitor ideal quer a solidão da proverbial ilha deserta para cultivar seus livros favoritos. Em certas condições, é verdade, a literatura pode servir a atividades coletivas. No século XIX, escritores como Charles Dickens e Mark Twain reuniam pequenas multidões em suas leituras públicas. A leitura também já foi um passatempo familiar: em Razão e Sensibilidade, de Jane Austen, há uma menção passageira aos serões em que as heroínas ouviam a leitura de Hamlet, de Shakespeare. No Brasil, uma cena similar se repete nas memórias de José de Alencar: o autor de O Guarani lembra como levava as mulheres de sua casa às lágrimas com a leitura de romances açucarados. No seu cerne, porém, a leitura é uma prática cercada de silêncio. Isso passou a ser tanto mais verdade no século XX, quando o rádio e a televisão tomaram o lugar das sessões de leitura doméstica e o circuito de massas que sustentou Dickens e Twain se retraiu em festivais como o de Hay-on-Wye, no País de Gales, ou o de Parati, no Brasil.

Esse elemento anti-social da literatura guarda os seus riscos – e muitos clássicos alertam para os perigos da leitura extremada. Em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, os livros de cavalaria condenam o protagonista à insanidade, e em Madame Bovary, de Gustave Flaubert, uma mulher provinciana que perdeu muito tempo com romances sentimentais deriva para o adultério – e para o suicídio. Espelhados na literatura, os leitores aparecem como animais esquisitos, que se afastam do convívio social e rompem com a ordem familiar. Quando são homens, esses personagens são em geral celibatários incorrigíveis – como Hamlet. E a mulher leitora é freqüentemente uma adúltera, como Emma Bovary . "A figura de uma mulher que lê tem algo de ameaçador para o mundo masculino", diz Piglia.

À primeira vista, o perigo efetivo da leitura parece exagerado nas obras de Cervantes e Flaubert. Mas é preciso lembrar que todo fundamentalismo tem um livro sagrado em sua base. Em O Último Leitor, há um inusitado capítulo sobre o revolucionário argentino Che Guevara – o guerrilheiro que construiu o próprio mito sob inspiração dos contos aventurescos de Jack London. "Ele representa a tensão do intelectual que se converte em homem de ação", diz Piglia. Professando uma doutrina desumana de sacrifício pela causa socialista, Guevara é uma advertência eloqüente: o salto da idéia livresca para a ação efetiva às vezes se dá pela via do autoritarismo. Como o livro de Piglia sugere, fugindo às obviedades, quem lê não se torna necessariamente uma pessoa melhor. Mas se torna, sem dúvida, uma pessoa mais rica.

Livros
2 de agosto de 2006

Leia trecho de O Último Leitor,
de Ricardo Piglia

1. O que é um leitor?

PAPÉIS AMASSADOS

Existe uma fotografia em que se vê Borges tentando decifrar as letras de um livro que segura grudado ao rosto. Está numa das galerias elevadas da Biblioteca Nacional da rua México, de cócoras, o olhar na página aberta.

Um dos leitores mais convincentes que conhecemos, a respeito de quem podemos imaginar que perdeu a visão lendo, tenta, apesar de tudo, prosseguir. Essa poderia ser a primeira imagem do último leitor, aquele que passou a vida inteira lendo, aquele que queimou os olhos na luz da lâmpada. "Agora sou um leitor de páginas que meus olhos já não vêem."

Há outros casos, e Borges os evocou como se fossem seus antepassados (Mármol, Groussac, Milton). Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor.

"O Aleph", o objeto mágico do míope, o ponto de luz em que todo o universo se desorganiza e se organiza conforme a posição do corpo, é um exemplo dessa dinâmica do ver e do decifrar. Os signos na página, quase invisíveis, se abrem para universos múltiplos. Em Borges, a leitura é uma arte da distância e da escala.

Kafka via a literatura do mesmo modo. Numa carta para Felice Bauer, define assim a leitura de seu primeiro livro: "Realmente há nele uma incurável desordem, e é preciso aproximar-se muito para ver alguma coisa" (grifo meu).

Primeira questão: a leitura é uma arte da microscopia, da perspectiva e do espaço (não só os pintores se ocupam dessas coisas). Segunda questão: a leitura é coisa de óptica, de luz, uma dimensão da física.

Finnegans Wake é um laboratório que submete a leitura a sua prova mais extrema. À medida que nos aproximamos, aquelas linhas nebulosas se transformam em letras e as letras se amontoam e se misturam, as palavras se transmutam, se alteram, o texto é um rio, uma torrente múltipla em contínua expansão. Lemos restos, pedaços soltos, fragmentos, a unidade do sentido é ilusória.

A primeira representação espacial desse tipo de leitura já está em Cervantes, sob a forma dos papéis que ele recolhia na rua. Essa é a situação inicial do romance, seu pressuposto, melhor dizendo. "Sou aficionado a ler até pedaços de papéis pelas ruas", afirma-se no D. Quixote (I, 9).

Poderíamos ver nesse trecho a condição material do leitor moderno: ele vive num mundo de signos; está rodeado de palavras impressas (que, no caso de Cervantes, a imprensa começou a difundir pouco antes); no tumulto da cidade, ele se detém para recolher papéis atirados na rua, deseja lê-los.

Só que agora, diz Joyce em Finnegans Wake — ou seja, na outra ponta do arco imaginário que se abre com D. Quixote —, esses papéis amassados estão perdidos numa lixeira, bicados por uma galinha que cavouca o chão. As palavras se misturam, se enlameiam, são letras corridas, mas continuam legíveis. Já sabemos que Finnegans é uma carta extraviada numa lixeira, um "tumulto de borrões e de manchas, de gritos e contorções e fragmentos justapostos". Shaum, aquele que lê e decifra no texto de Joyce, está condenado a "cavoucar para todo o sempre até fundir os miolos e perder a cabeça, o texto se destina a esse leitor ideal que sofre de uma insônia ideal" (by that ideal reader suffering from an ideal insomnia).

O leitor viciado, o que não consegue deixar de ler, e o leitor insone, o que está sempre desperto, são representações extremas do que significa ler um texto, personificações narrativas da complexa presença do leitor na literatura. Eu os chamaria de leitores puros; para eles a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida.

Muitas vezes os textos transformaram o leitor num herói trágico (e a tragédia tem muito a ver com ler mal), num obstinado que perde a razão porque não quer capitular em sua tentativa de encontrar o sentido. Existe uma ampla relação entre droga e escrita, mas poucos rastros de uma possível relação entre droga e leitura, exceto em certos romances (de Proust, Arlt, Flaubert) em que a leitura se transforma numa dependência que distorce a realidade, numa doença e num mal.

Trata-se sempre do relato de uma exceção, de um caso-limite. Na literatura, aquele que lê está longe de ser uma figura normalizada e pacífica (não fosse assim, não haveria narração); antes, aparece como um leitor extremo, sempre apaixonado e compulsivo. (Em "O Aleph" o universo inteiro é um pretexto para ler as cartas obscenas de Beatriz Viterbo.)

Rastrear o modo como a figura do leitor está representada na literatura supõe trabalhar com casos específicos, histórias particulares que cristalizam redes e mundos possíveis.

Detenhamo-nos, por exemplo, na cena em que o Cônsul, no fim de Under the Volcano, o romance de Malcolm Lowry, lê cartas no El Farolito, a cantina de Parián, no México, à sombra de Popocatépetl e do Iztaccíhuatl. Estamos no último capítulo do livro, e em certo sentido o Cônsul foi até ali para encontrar o que perdeu. São as cartas que Yvonne, sua ex-mulher, lhe escreveu ao longo daqueles meses de ausência e que o Cônsul esqueceu no bar, meses antes, bêbado. Trata-se de um dos temas centrais do romance; a intriga oculta que sustenta a trama, as cartas extraviadas que, apesar de tudo, chegaram a seu destino. Quando ele as vê, compreende que só poderiam estar ali e em nenhum outro lugar, e no fim irá morrer por elas.

O Cônsul bebeu um pouco mais de mezcal.

"É esse silêncio que me apavora... esse silêncio..."

O Cônsul releu várias vezes essa frase, a mesma frase, a mesma carta, todas as letras, inúteis como as que chegam ao porto a bordo de um navio dirigidas a alguém que ficou sepultado no mar, e como estava com certa dificuldade de fixar a vista, as palavras se tornavam indistintas, desarticuladas, e seu próprio nome lhe causava estranhamento; mas o mezcal o pusera novamente em contato com sua situação, a tal ponto que agora não precisava mais compreender significado algum nas palavras além da abjeta confirmação de sua própria perdição...

No universo do romance as velhas cartas são entendidas e decifradas pelo próprio texto; mais do que um sentido, produzem uma experiência e, ao mesmo tempo, só a experiência permite decifrá-las. Não se trata de interpretar (porque já se sabe tudo), mas de reviver. O romance — ou seja, a experiência do Cônsul — é o contexto e o comentário daquilo que se lê. As palavras lhe dizem respeito pessoalmente, como uma espécie de profecia realizada.

No excesso é possível entrever um pouco da verdade da prática da leitura; seu avesso, sua zona secreta: os usos desviados, a leitura fora do lugar. Talvez o exemplo mais nítido desse modo de ler esteja no sonho (nos livros que se lêem nos sonhos).

Em determinado ponto de sua biografia, Richard Ellman mostra Joyce muito interessado nessas questões. "‘Me diga, Bird’, disse ele a William Bird, um companheiro freqüente naqueles dias, ‘alguma vez você já sonhou que estava lendo?’ ‘Muitas vezes’, respondeu Bird. ‘Então me diga: com que velocidade você lê em seus sonhos?’"

Há uma relação entre a leitura e o real porque também há uma relação entre a leitura e os sonhos, e nesse duplo vínculo o romance tramou sua história.

Melhor dizendo, o romance — com Joyce e Cervantes em primeiro lugar — procura seus temas na realidade, mas encontra nos sonhos um modo de ler. Essa leitura noturna define um tipo particular de leitor, o visionário, o que lê para saber como viver. Sem dúvida, o Astrólogo de Arlt é uma figura extrema desse tipo de leitor. Assim como Erdosain, seu duplo melancólico e suicida, que lê num jornal a notícia de um crime e depois a repete quando mata la Bizca.

Nesse registro imaginário e quase onírico dos modos de ler, com suas táticas e seus desvios, com suas modulações e suas mudanças de ritmo, produz-se também um outro deslocamento, que é uma amostra da forma específica com que a literatura narra as relações sociais. A experiência está sempre localizada e situada, concentra-se numa cena específica, nunca é abstrata.

Haveria, nesse sentido, dois caminhos. Por um lado, acompanhar o leitor, visto sempre de viés, quase como um detalhe à margem, em certas cenas que condensam e fixam uma história muito fluida. Por outro lado, acompanhar o registro imaginário da prática em si e seus efeitos, uma espécie de história invisível dos modos de ler, com suas ruínas e suas pegadas, sua economia e suas condições materiais.

Efetivamente, ao fixar as cenas de leitura, a literatura individualiza e designa aquele que lê, faz com que ele seja visto num contexto preciso, nomeia-o. E o nome próprio é um acontecimento, porque o leitor tende a ser anônimo e invisível. De repente o nome associado à leitura remete à citação, à tradução, à cópia, às diferentes maneiras de escrever uma leitura, de tornar visível que se leu (o crítico seria, nesse sentido, a figuração oficial desse tipo de leitor, mas evidentemente não o único nem o mais interessante). Trata-se de um tráfico paralelo ao das citações: uma figura é nomeada, ou melhor, é citada. Faz-se ver uma situação de leitura, com suas relações de propriedade e seus modos de apropriação.

Procuramos, então, as figurações do leitor na literatura; ou seja, as representações imaginárias da arte de ler na ficção. Tentamos fazer uma história imaginária dos leitores, e não uma história da leitura. Não nos perguntaremos tanto o que é ler, como quem é aquele que lê (onde está lendo, para quê, em que condições, qual é a sua história).

Eu denominaria esse tipo de representação de uma lição de leitura, se me for permitido alterar o título do texto clássico de Lévi-Strauss e imaginar a posição do antropólogo que recebe a descrição de um informante sobre uma cultura que desconhece. Essas cenas funcionariam, então, como uma espécie de pequenos informes sobre o estado de uma sociedade imaginária — a sociedade dos leitores — que sempre parece a ponto de entrar em extinção ou, em todo caso, cuja extinção está anunciada desde sempre.

Entre nós, o primeiro que pensou esses problemas foi, como sabemos, Macedonio Fernández. Macedonio tinha a pretensão de que seu Museo de la novela de la Eterna fosse "a obra em que o leitor será finalmente lido". E se propôs estabelecer uma classificação: séries, tipologias, categorias e casos de leitores. Uma espécie de zoologia ou de botânica irreal que identifica gêneros e espécies de leitores na selva da literatura.

Para poder definir o leitor, diria Macedonio, primeiro é preciso saber encontrá-lo. Ou seja, nomeá-lo, individualizá-lo, contar sua história. A literatura faz isso: dá ao leitor um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica.

A pergunta "o que é um leitor?" é, sem sombra de dúvida, a pergunta da literatura. Essa pergunta a constitui, não é externa a si mesma, é sua condição de existência. E a resposta a essa pergunta — para benefício de todos nós, leitores imperfeitos porém reais — é um texto: inquietante, singular e sempre diverso.

OS RASTROS DE TLÖN

Sempre existe algo de inquietante, ao mesmo tempo estranho e familiar, na imagem concentrada de alguém que lê, uma misteriosa intensidade que a literatura fixou inúmeras vezes. O sujeito se isolou, parece separado do real.

Hamlet entra lendo um livro imediatamente depois da aparição do fantasma do pai, e o fato é imediatamente percebido como um sinal de melancolia, um sintoma de perturbação.

Em seu Diário, Kafka se referiu à própria estranheza perante a excisão que acompanha o ato de ler. "Enquanto eu lia Beethoven e os apaixonados, passavam-me pela cabeça diversos pensamentos que não tinham a menor relação com a história que eu estava lendo (pensei no jantar, pensei em Lowy, que esperava por mim), mas esses pensamentos não me entorpeciam a leitura, que justamente hoje foi muito pura."

A vida não se detém, diria Kafka, somente se separa daquele que lê, segue seu curso. Há um certo desajuste que, paradoxalmente, a leitura viria exprimir.

O leitor inventado por Borges se instala nesse espaço. O que estou dizendo é que Borges inventa o leitor como herói a partir do espaço que se abre entre a letra e a vida. E esse leitor (que freqüentemente afirma chamar-se Borges, mas que também pode chamar-se Pierre Menard ou Hermann Soergel ou ser o anônimo bibliotecário aposentado de "O livro de areia") é um dos personagens mais memoráveis da literatura contemporânea. O leitor mais criativo, mais arbitrário, mais imaginativo que já existiu desde D. Quixote. E o mais trágico.

Em Borges já não se trata de alguém que — como Kafka, digamos —, no dormitório da casa familiar, noite alta, lê um livro sentado diante de uma janela voltada para as pontes de Praga. Trata-se, em vez disso, de alguém perdido numa biblioteca, alguém que passa de um livro para outro, que lê uma série de livros e não um livro isolado. Um leitor disperso na fluidez e no rastreamento e que tem todos os volumes a sua disposição. Vai atrás de nomes, fontes, alusões; passa de uma citação para outra, de uma referência para outra.

O exame microscópico das leituras também se expande: o leitor vai da citação para o texto como série de citações, do texto para o volume como série de textos, do volume para a enciclopédia, da enciclopédia para a biblioteca. Esse espaço fantástico não tem fim porque supõe a impossibilidade de encerrar a leitura, a sensação acachapante de tudo o que ainda falta ler.

Não obstante, alguma coisa falha, sempre, nessa série: uma citação que se extraviou, uma página que se espera encontrar e que está em algum outro lugar.

"Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" — o conto de Borges que define sua obra — começa com um texto perdido, um artigo da enciclopédia; alguém o leu, mas não consegue mais encontrá-lo. O que irrompe não é o real, mas a ausência, um texto que não se tem e cuja busca leva, como num sonho, ao encontro de outra realidade.

A falta é imediatamente assimilada ao que foi substraído. Há nisso um quê político que remete ao complô, a uma lógica cruel e sigilosa que altera a ordem do mundo. Alguém está de posse do que falta, alguém o apagou. Não é um enigma nem um mistério; é um segredo, no sentido etimológico (scernere significa "pôr à parte", "esconder"). Uma página — um livro — sumiu, a carta foi roubada, o sentido vacila e, nessa vacilação, emerge o fantástico.

A versão contemporânea da pergunta "o que é um leitor?" se instala nesse lugar. O leitor perante o infinito e a proliferação. Não o leitor que lê um livro, mas o leitor perdido numa rede de signos.

O imaginário se aloja entre o livro e a lâmpada, dizia Foucault, falando de Flaubert. No caso de Borges, o imaginário se instala entre os livros, surge em meio à sucessão simétrica de volumes alinhados nas estantes silenciosas de uma biblioteca.

"A certeza de que tudo está escrito nos anula e nos transforma em fantasmas", escreve Borges. A metáfora do incêndio da biblioteca é, muitas vezes, em seus textos, uma ilusão noturna e um alívio impossível. Os livros permanecem, perdidos nos profundos corredores circulares. Todos nós, diz Borges, ali nos extraviamos.

Nesse universo saturado de livros, em que tudo está escrito, só é possível reler, ler de outro modo. Por isso, uma das chaves desse leitor inventado por Borges é a liberdade no uso dos textos, a disposição para ler segundo o interesse e a necessidade. Uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis. A marca dessa autonomia absoluta do leitor em Borges é o efeito de ficção produzido pela leitura.

Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (Borges não é Derrida, não é Paul de Man), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura.

Podemos ler filosofia como literatura fantástica, diz Borges, ou seja, podemos transformar a filosofia em ficção mediante um deslocamento e um erro deliberado, um efeito produzido no ato mesmo de ler.

Podemos ler a Enciclopédia britânica como ficção, e estaremos no mundo de Tlön. A Enciclopédia britânica apócrifa de Tlön é a descrição de um universo alternativo surgido da própria leitura.

Sem dúvida, o mundo de Tlön é um hrönir de Borges: a ilusão de um universo criado pela leitura e que dela depende. Há uma certa inversão do bovarismo, sempre implícita em seus textos; não se lê a ficção como mais real do que o real, mas o real perturbado e contaminado pela ficção.

Por isso, no fim o mundo é invadido por Tlön, a realidade se dissolve e se altera. O narrador se refugia novamente na leitura; desta vez em outro tipo de leitura, uma leitura controlada, minuciosa, a leitura como tradução. O tradutor é, aqui, o leitor perfeito, um copista que escreve o que lê em outra língua, que copia, fiel, um texto, e na minuciosidade dessa leitura esquece o real: "O contato e o hábito de Tlön desintegraram esse mundo [...] Não me incomodo, continuo revisando, nos quietos dias do hotel da Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que não pretendo publicar) do Urn Burial, de Browne".

"Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" apresenta os dois movimentos do leitor em Borges: a leitura é ao mesmo tempo a construção de um universo e um refúgio diante da hostilidade do mundo.

O que me interessa destacar no belíssimo final de "Tlön" é uma coisa que encontraremos em muitos outros textos de Borges: a loucura como defesa. A quietude a que se refere a hipálage está no ato de ler; tudo fica em suspenso; a vida, por fim, se deteve.

Encontramos de novo a fissura, a excisão que a leitura viria exprimir. Um contraste entre as exigências práticas, digamos, e aquele momento de quietude, de solidão, aquela forma de recolhimento, de isolamento, em que o sujeito se perde, indeciso, na rede dos signos.

Do outro lado dos livros, transposta a superfície preta e branca das palavras impressas, do outro lado de um jardim e de uma grade de ferro, o mundo parece irreal, ou, melhor dizendo, o mundo é exatamente essa irrealidade.

Ao mesmo tempo, em Borges o ato de ler articula o imaginário e o real. Melhor seria dizer: a leitura constrói um espaço entre o imaginário e o real, desmonta a clássica oposição binária entre ilusão e realidade. Não existe nada simultaneamente mais real e mais ilusório do que o ato de ler.

Muitas vezes o ponto em que se cruzam o sonho e a vigília, a vida e a morte, o real e a ilusão, é representado pelo ato de ler.

Basta pensar na dupla viagem narrada em "O Sul". Lá está Dhalman, para quem a sofreguidão de ler o exemplar já muito gasto de As mil e uma noites provoca um acidente que o leva à morte. (E muitas vezes, em Borges, a leitura leva à morte.) Mais adiante encontramos Dahlman convalescente, lendo As mil e uma noites no trem para esquecer a doença até ser distraído pela planície, ser distraído pela realidade e, aliviado, deixar-se, simplesmente, viver. E, por fim, Dhalman naquele lugarejo perdido ao sul da província de Buenos Aires recorrendo à leitura para isolar-se e proteger-se e refugiando-se mais uma vez no volume de As mil e uma noites até ser arrancado de seu isolamento pelos fregueses do armazém, que o atazanam e desafiam.

Sabemos que se trata de um sonho. No momento de morrer de septicemia no leito do hospital, Dhalman imagina — escolhe, afirma Borges — uma morte heróica num combate a céu aberto. Essa morte é real, é contada como se fosse real — portanto é real. Uma vez mais, na planície argentina, nos fundos de um armazém, ocorre um duelo a faca.

O volume de As mil e uma noites está nas duas mortes; seria o caso de dizer que ele é a causa das duas mortes. Num dos casos, é a sofreguidão de ler que desemboca no acidente; no outro, é o risco de ler que desemboca no desafio.

Porém há outra coisa que desejo destacar aqui. No armazém, Dhalman é provocado porque está lendo, porque o vêem ler, distraído, um livro. Quero dizer que, freqüentemente, o outro do leitor também está representado. Não apenas o que lê, como também quem enfrenta aquele que lê, com quem ele dialoga e negocia essa forma de construir o sentido que é a leitura.

Bastaria pensar em D. Quixote e em Sancho, na decisão milagrosa de Cervantes que, logo depois da primeira investida, põe em cena aquele que não lê. "Pois lhe asseguro que não sei ler", respondeu Sancho (I, 31). Esse encontro, esse diálogo, funda o gênero. Seria o caso de dizer-se que nessa decisão, que confronta leitura e oralidade, está o romance inteiro.

LEITORES NO DESERTO ARGENTINO

Não há dúvida de que a pergunta "o que é um leitor?" também é a pergunta do outro. A pergunta — às vezes irônica, às vezes agressiva, às vezes piedosa, mas sempre política — daquele que olha ler aquele que lê.

A literatura argentina é percorrida por essa tensão. Muitas vezes a oposição entre civilização e barbárie foi representada dessa maneira. Como se essa fosse sua encarnação básica, como se nisso se jogassem a política e as relações de poder.

Evoquemos a cena em que Mansilla (um dos grandes escritores argentinos do século XX, autor de Una excursión a los índios Ranqueles) lê Le Contrat social, de Rousseau — em francês, evidentemente —, sentado debaixo de uma árvore, no campo, perto de um abatedouro onde o gado é sacrificado, até o momento em que seu pai (o general Lucio N. Mansilla, herói da batalha de Vuelta Obligado) se aproxima dele e lhe diz: "Meu amigo, um sobrinho de dom Juan Manuel de Rosas não lê O contrato social caso pretenda ficar neste país. Que parta, se quiser lê-lo com proveito". E finalmente o despacha para o exílio.

Nessa cena narrada por Mansilla em suas Causeries e que transcorre em 1846, cristalizam-se redes de toda a cultura argentina do século XIX. A civilização e a barbárie, como decretou Sarmiento.

Rousseau e o abatedouro. De um lado, a tradição dos letrados (é preciso dizer que Mariano Moreno, o ideólogo da independência, o líder da revolução contra o absolutismo espanhol, foi o primeiro tradutor de O contrato social). De outro, logo em frente, o abatedouro, uma sinédoque clássica da barbárie vista da própria origem da literatura argentina, o lugar sangrento onde as classes perigosas se adestram na arte de matar.

A civilização e a barbárie estão em jogo no controle do sentido, nas diferentes maneiras de aceder ao sentido. Mas nada nunca é tão esquemático.

O complemento dessa cena está na história extraordinária do coronel Baigorria, que cruza a fronteira e vai viver com os índios (como Martín Fierro e o sargento Cruz no final de Martín Fierro), e para quem os Ranqueles (os mesmos Ranqueles que Mansilla visitará vinte anos depois) levam, depois de um ataque às povoações do norte, um exemplar do Facundo, de Sarmiento. Estamos em 1850.

Baigorria escreve suas memórias depois de voltar para a civilização, por assim dizer, e nelas conta sua vida na terceira pessoa (e vários cronistas da região fronteiriça com os territórios indígenas, como Estanislao Zeballos, também narraram sua experiência com o famoso "Cacique blanco").

Tinha um exemplar de Facundo, de Sarmiento, com páginas faltando, que era sua leitura predileta e que o apaixonava [...] Aquele livro fora um presente de um cacique que saqueara uma carreta na vila de Achiras, [...] Baigorria mandara construir um rancho de palha e barro num local afastado do acampamento de Paine; ali cultivava solitariamente seus instintos civilizados.

Um rancho para ler no meio da planície. Solitariamente. Parece mais drástico do que a biblioteca de Borges.

No deserto, do outro lado da fronteira, entre os índios, um leitor — uma versão extremada de Dhalman — lê Facundo e revive nesse livro, talvez, a experiência e o sentido do mundo que deixou para trás.

Antes de mais nada, seria o caso de descobrir o que faz aí esse exemplar de Facundo, livro publicado no Chile três anos antes: em que mãos esteve, onde perdeu as páginas que lhe faltam, quem o levava na tal carreta em pleno período de Rosas, e também o que significava o livro para os Ranqueles, para que resolvessem recolhê-lo junto com os despojos da matança e levá-lo para Baigorria.

A pergunta "o que é um leitor?" é também a pergunta sobre como os livros vão parar nas mãos daquele que os lê, como é narrada a entrada nos textos.

Livros encontrados, emprestados, roubados, herdados, saqueados pelos índios, salvos do naufrágio (como o exemplar da Bíblia e os livros em português que Robinson Crusoé — já sabemos que ele passou alguns anos no Brasil — recolhe entre os despojos do navio naufragado e leva para a ilha deserta), livros que se distanciam e se perdem na planície.

W. H. Hudson, um dos melhores escritores em língua inglesa do século XIX, guardava a seguinte lembrança de sua juventude no campo argentino: "Não tínhamos romances. Quando um romance chegava a nossa casa, era lido e depois emprestado ao vizinho mais próximo, a umas duas léguas de casa, e esse vizinho, por sua vez, emprestava a outro vizinho, sete léguas adiante, e assim sucessivamente até que o livro desaparecia no espaço".

Livros reais, livros imaginários, livros que circulam na trama, que dependem dela e que muitas vezes a definem. Os livros, na literatura, não funcionam apenas como metáforas — como as que Curtius analisou admiravelmente em Literatura européia e Idade Média latina —, mas também como articulações da forma, nós que põem em relação os níveis do texto e desempenham uma complexa função construtiva na narração.

Pensemos, por exemplo, no livro sobre a mística judaica que, incrivelmente, é lido por Scharlach, o gângster, em "A morte e a bússola". Toda a supresa e a invenção do texto de Borges estão ali. "Li a História da seita dos Hassidim", diz Scharlach; "fiquei sabendo que o medo reverente de pronunciar o Nome de Deus dera origem à doutrina de que esse Nome é todo-poderoso e recôndito." Sem esse livro imaginário — sem essa cena decisiva e sarcástica em que um assassino usa um livro para capturar um homem que acredita apenas no que lê —, não haveria história.

Temos que imaginar, portanto, Scharlach, um dândi sanguinário e sinistro, como leitor.

O que lê, onde, por quê, quando, em que situação? Lê para vingar-se de Lönnrot, portanto lê para Lönnrot e contra Lönnrot, mas também lê com ele. Lê a partir de Lönnrot (como Borges nos recomenda ler alguns textos a partir de Kafka), para seduzi-lo e capturá-lo em suas redes. Infere, deduz, imagina sua leitura e a duplica, confirma-a. Trata-se de uma espécie de bovarismo forçado, porque Scharlach na verdade obriga Lönnrot a atuar o que lê. A fé está em jogo. Lönnrot acredita no que lê (não acredita em outra coisa); poder-se-ia dizer que lê ao pé da letra. Ao passo que Scharlach, por sua vez, é um leitor displicente, que usa o que lê para seus própios fins, tergiversa e transporta o que lê para o real (como crime).

Evidentemente, Scharlach e Lönnrot (ou seja, o criminoso e o detetive) são duas maneiras de ler. Dois tipos de leitor confrontados.

O leitor como criminoso, que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. Lê mal, mas apenas no sentido moral; faz uma leitura cruel, rancorosa, faz um uso pérfido da letra. Poderíamos pensar na crítica literária como um exercício desse tipo de leitura criminosa. Lê-se um livro contra outro leitor. Lê-se a leitura inimiga. O livro é um objeto transacional, uma superfície sobre a qual se deslocam as interpretações.

Scharlach usa o que lê como armadilha, como maquinação sombria, como superfície em branco sobre a qual os corpos deslizam. Em certo sentido, é o leitor perfeito; difícil encontrar uso mais eficaz para um livro. Provisoriamente, é o oposto do leitor inocente. Scharlach realiza a ilusão de D. Quixote, só que deliberadamente. Realiza na realidade o que lê (e o faz para outro). Vê no real o efeito daquilo que leu.

Mas como ele lê, como constrói o sentido? Ferido, como numa vertigem, lê a repetição, para vingar-se. (Seria preciso fazer uma história da leitura como vingança.) Ele mesmo decifra as condições de sua leitura, o contexto que determina o sentido, as questões materiais que trata de resolver a partir daquilo que lê.

"Nove dias e nove noites eu agonizei naquela desolada granja simétrica; a febre me arrasava, o odioso Janus bifronte que olha os ocasos e as auroras horrorizava meus sonhos e minha vigília."

Scharlach, um leitor doente.

O CASO HAMLET

Agora eu gostaria de voltar a Hamlet, o dândi epigramático e enlutado que, como Scharlach, também deseja vingar-se (seria melhor dizer que é obrigado a vingar-se).

Depois do encontro crucial com o fantasma do pai, Hamlet, como dissemos, entra com um livro na mão. Era muito raro que Shakespeare fizesse marcações de cena, mas desde as primeiras edições consta a especificação: "Hamlet entra lendo um livro".

É claro que nos perguntamos se ele está mesmo lendo ou se finge que lê. O fato é que ele se apresenta com um livro. O que significa ler naquele contexto, na corte? Que tipo de situação está implícita no fato de alguém se apresentar lendo um livro no quadro das lutas de poder?

Não sabemos que livro ele lê, e não vem ao caso. Mais adiante, Hamlet descarta a importância do conteúdo. Polônio lhe pergunta o que está lendo. "Palavras, palavras, palavras", responde Hamlet. O livro está vazio; o que importa é o próprio ato de ler, sua função na tragédia.

Essa ação une os dois mundos em jogo na obra. De um lado, o vínculo com a tradição da tragédia, a transformação da figura clássica do oráculo, a relação com o espectro, com a voz dos mortos, a obrigação de vingança que lhe vem dessa espécie de ordem transcendente. De outro lado, o momento antitrágico do homem que lê, ou finge que lê. A leitura, como dissemos, é vista como isolamento e solidão, como outro tipo de subjetividade. Nesse sentido, Hamlet é um herói da consciência moderna porque é um leitor. O que está em jogo é a interioridade.

A cena em que Hamlet entra lendo é um momento de transição entre duas tradições e dois modos de entender o sentido. Bertolt Brecht — que era, evidentemente, um grande leitor, um dos maiores —, em O pequeno organon para o teatro, escrito em 1948, observa que Hamlet é "um homem jovem, embora já um pouco entrado em carnes, que faz um uso extremamente ineficaz da nova razão, de que teve notícia durante sua passagem pela Universidade de Witenberg". Hamlet vem da Alemanha, vem da universidade, e Brecht vê nesse fato a primeira marca da diferença. "No seio dos interesses feudais, em que se encontra ao regressar, aquele novo tipo de razão não funciona. Diante de uma prática irracional, sua razão se mostra absolutamente não prática, e Hamlet cai, vítima trágica da contradição entre aquela forma de raciocinar e a situação imperante." Brecht vê na tragédia a tensão entre o universitário que chega da Alemanha com idéias novas e o mundo arcaico e feudal. Essa tensão e essas idéias novas estão encarnadas no livro que ele lê, simplesmente um signo de um novo modo de pensar, oposto à tradição da vingança. A legendária indecisão de Hamlet poderia ser vista como um efeito da incerteza da interpretação, das múltiplas possibilidades de sentido implícitas no ato de ler.

Existe uma tensão entre o livro e o oráculo, entre o livro e a vingança. A leitura se opõe a outro universo de sentido. A outra maneira de construir o sentido, melhor dizendo. Habitualmente, o que o sujeito está deixando de lado é um aspecto do mundo, um mundo paralelo. E o ato de ler, de ter um livro, costuma articular essa passagem. A letra tem algo de mágico, como se convocasse um mundo ou o anulasse.

Seria possível afirmar que Hamlet vacila porque se perde na vacilação dos signos. Se afasta, tenta afastar-se, de um mundo para entrar em outro. De um lado parece estar o sentido pleno, embora enigmático, da palavra que vem do Além; do outro está o livro. No meio, está o palco.


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