Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, junho 26, 2006

VEJA Lya Luft Ensaio sobre a amizade

"Nesta página, hoje, sem razão especial
nem data marcada, estou homenageando
aqueles que têm estado comigo seja
como for, para o que der e vier"

Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem
pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe
respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é claro,
seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base
estaria ali: na confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na
admiração. Na tranqüilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela
pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres.

Atômica Studio

Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é
instinto e intuição, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas,
que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu
não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como
amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos
ganhos que a passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para
quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia
ou da madrugada, e dizer: "Estou mal, preciso de você". E ele ou ela
estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões
a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que
eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o
que for.

Mais reservada do que expansiva num primeiro momento, mais para
tímida, tive sempre muitos conhecidos e poucas, mas reais, amizades
de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a
gente sabe que pode caminhar. Sem elas, eu provavelmente nem estaria
aqui. Falo daquelas amizades para as quais eu sou apenas eu, uma
pessoa com manias e brincadeiras, eventuais tristezas, erros e
acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida.
Para eles não sou escritora, muito menos conhecida de público algum:
sou gente.

A amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas sem o
ônus do ciúme – o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é
rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar (com carinho,
por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer
de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto
depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amiga é aquela a quem se
pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair para pegar
as crianças na chuva: a amiga vai, e pega junto com as dela ou até
mesmo se nem tem criança naquele colégio.

Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e
ele chega confortando, chamando de "minha gatona" mesmo que a gente
esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde
cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava
de não precisar de amigos: "Tenho meu marido e meus filhos, e isso me
basta". O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num
deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado
uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca tive coragem de lhe
dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida
afetiva. E que amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são
cultivados com... amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem
método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças
quando não lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto.

Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo
de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo,
foram amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados
amigos, que seguraram as pontas. E eram pontas ásperas aquelas.
Agüentei, persisti, e continuei amando a vida, as pessoas e a mim
mesma (como meu amado amigo Erico Verissimo, "eu me amo mas não me
admiro") o suficiente para não ficar amarga. Pois, além de acreditar
no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha aqueles amigos. Com
eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendi
solidariedade, simplicidade, honestidade, e carinho.

Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou
homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for,
para o que der e vier, mesmo quando estou cansada, estou burra, estou
irritada ou desatinada, pois às vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o
bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se
sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais
nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode
simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador,
deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro
amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes
irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos agüenta
e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o
verdadeiro amor.

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