Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 30, 2006

Merval Pereira O moralismo de Baudrillard

O GLOBO

BAKU. A derrubada das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, nos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, sempre foi uma espécie de metáfora preferida do filósofo francês Jean Baudrillard para atacar a hegemonia americana no mundo moderno. Na palestra que fez no seminário da Academia da Latinidade no Azerbaijão, Baudrillard alongou-se na análise daqueles acontecimentos que, para ele, continuam "desestabilizando todo o universo politico ou geopolítico da globalização". É também à globalização que Baudrillard atribui a crise em que ele acredita se perde a espécie humana, que "passa por um momento de pânico face à superexposição à felicidade e a esta matriz extravagante de mundo", diz o filósofo francês.

A análise de Baudrillard sobre o atual estado da civilização moderna é pessimista e ácida, recheada de um moralismo radical. Baudrillard chama a atenção para o fato de que, diante da crise de recurso naturais, as teorias econômicas estão revendo seus conceitos quanto à possibilidade de um crescimento infinito. "Mas não existe a mesma posição diante de outro postulado, o de que o homem tem uma disponibilidade infinita à felicidade e à alegria". Para ele, ninguém pode agüentar "essa excrescência, essa proliferação ao infinito, inclusive a da espécie, com seus 6 bilhões de seres humanos".

Ele vê uma situação paradoxal no fato de que "a hiperrealização dos desejos, mesmo antes que eles tenham tempo de surgir, seja a verdadeira maldição". Baudrillard diz que desde o início da civilização o gênero humano aspira acima de suas possibilidades, por uma rapidez de liberação que o leva além de si mesmo. "A aventura espacial é nada menos que metáfora extrema dessa evasão fora de seu território mental".

Essa distorção provoca, segundo ele, uma "espécie de depressão crescente, uma descompensação não por um ideal inacessível, mas por uma forma de gratificação excessiva".

Tudo se comporta na tensão entre o desejo e sua realização, entre as necessidades e sua satisfação. "Hoje, a realização imediata suplanta de longe a possibilidade de alegria de um ser humano normal", adverte Baudrillard.

E é nesse ponto, segundo Baudrillard, que se coloca a verdadeira fratura, não social, mas simbólica: diante do surgimento de uma realidade integral que absorve todas as veleidades de sonho ou de revolta. Baudrillard alista nessa ordem os "desesperos" do homem moderno:

- O desespero de ter tudo;

- O desespero de ser ninguém;

- O desespero de ser todo mundo.

E, com fina ironia, ele faz essa relação usando a língua inglesa, como a indicar que esses "desesperos" do homem moderno decorrem de uma civilização dominada pela hegemonia dos Estados Unidos. Pegando os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos como exemplos de "acontecimentos-bandidos" que vêm desafiando a humanidade, como as doenças interplanetárias, Baudrillard diz que daquele dia, o aterrorizante não é apenas a destruição material das torres do World Trade Center em Nova York, mas o acontecimento de alguma coisa que, sendo inconcebível como realidade, não faz parte mais da ficção.

Na definição do filósofo francês, a ficção dos filmes-catástrofes faz parte de nosso sistema imunológico, nos protege da realidade através de seu papel imaginário, absorve nossos fantasmas. Mas o atentado fez se transformarem em realidade todos os nossos fantasmas, tal como um sonho, como a sublimação do desejo.

A realidade só existe na medida em que podemos interferir sobre ela, diz Baudrillard, mas se surge alguma coisa que não podemos modificar, mesmo na imaginação, e que escapa a toda representação, ela simplesmente nos expulsa. Para o filósofo francês, é impossível saber o que aconteceria se apenas uma das torres fosse destruída: "A morte de uma só pode levar à more da outra. Por contágio simbólico", afirma Baudrillard.

Também seria impossível destrui-las por explosão, a partir da base, segundo a topologia normal, pelas razões técnicas corretas, diz Baudrillard, lembrando que o atentado de 1996 fracassou. "Elas não faziam parte desse espaço", afirma Baudrillard, para quem essa é uma analogia à hegemonia, que também não pode ser combatida dentro do espaço tradicional do equilíbrio de forças e da violência.

"Esse foi o golpe de gênio dos terroristas, que encontraram, para além do confronto tradicional, dentro dessa nova dimensão territorial, uma resposta à altura dessa nova força". Baudrillard diz que não é à toa que o resultado máximo obtido pelos terroristas, com meios pobres usados nesse atentado, deixa as pessoas admiradas.

"A extrema originalidade desse ato simbólico foi não apenas perverter as tecnologias mais avançadas, pegando-as ao contrário, mas adivinhar as possibilidades de um outro espaço estratégico". Em vez do choque frontal, um duelo assimétrico, que implicaria, acima da confrontação de forças, uma mudança das regras do jogo, segundo Baudrillard.

Um duelo que, com seu impacto oblíquo, tem um pouco de arte marcial, que se aproveita da força do adversário para contra-atacar com sua própria energia.

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Depois de quase duas semanas acompanhando no Azerbaijão o seminário "Cultura da diferença na Eurásia", a convite da Academia da Latinidade, entro de férias. Volto a escrever a coluna na terça-feira 16 de maio.

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