Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 29, 2006

FERREIRA GULLAR Arapongas

FSP

Cada dia que passa, mais me convenço de que vivemos num mundo inventado, e não apenas no que se refere às tecnologias e valores que sustentam nossa vida, mas também no que diz respeito à história ou histórias que constituem o nosso passado. Têm alguma razão os que dizem ser a versão mais verdadeira que os fatos, mas, ao que parece, existem quase sempre não uma, mas várias versões de um mesmo fato, o que dificulta saber qual delas é a verdadeira. A esta altura me pergunto se alguma delas o é ou, pelo menos, se é possível aferir qual. Digo isto porque, afora o fato material em si mesmo -por exemplo, um sujeito foi atropelado por um carro-, tudo o mais são versões: a versão do atropelado, a do atropelador, a do transeunte que estava na calçada...
Cada um deles viu o fato de um ângulo diferente e, por isso, as versões divergem em alguns pontos. Pode ser que se consiga construir, a partir delas, uma versão única e coerente, mas será impossível afirmar que se trata de uma verdade indiscutível. E a coisa se complica depois que cada um conta sua versão a outra pessoa, que a passa adiante, sempre mudando alguma coisa ou lhe acrescentando algo. Isso tratando-se de um simples acidente de trânsito; imagine agora quando se trata de um acontecimento como a Revolução Francesa ou o assassinato de John Kennedy? Bem, dirá você, importa é o que de fato ocorreu e mudou a vida das pessoas; o que se conta e se escreve é história ou estória -que é sempre ficção.
Mas a que vem esse papo-cabeça, perguntará o leitor, já temendo que vá eu prosseguir na minha filosofia de ponta-de-lenço. É que acabo de ler que o novo diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que substituiu o SNI (Serviço Nacional de Informações), decidiu que a ave que simbolizará, de agora em diante, o agente secreto brasileiro não será mais a araponga, mas o carcará. Pode parecer piada, mas, a confiarmos na imprensa, é pura verdade. Se essa decisão do diretor da Abin já parece inverossímil, a informação, contida na notícia, de que o nome araponga "persegue os agentes do SNI desde a época da ditadura" é falsa. O apelido "araponga" nasceu com a novela do mesmo nome, exibida pela TV Globo em 1990-91, escrita por Dias Gomes, Lauro César Muniz e eu. E surgiu da seguinte maneira: propusemos à emissora uma novela de caráter policial-humorístico e pensamos numa história que envolvesse um agente secreto da ditadura. Aceita a proposta, solicitamos uma pesquisa que nos fornecesse o máximo de informações sobre o SNI e soubemos, assim, que a direção da agência adotava o critério de usar, como codinome de seus agentes, nomes de pássaros e insetos, desde pipira até percevejo. Foi o Dias que, de molecagem, botou o nome de Araponga em nosso personagem. Parecia-nos realmente gaiato um agente secreto adotar o nome de um pássaro cujo berro metálico ecoa por quilômetros de mata.
Quem viu a novela deve se lembrar de que o personagem, uma vez finda a ditadura, não tinha mais a quem alcagüetar nem torturar (isso de torturar era uma licença "poética", que fundia o SNI com o DOI-Codi) e, por essa razão, trancado em seu quarto, torturava-se a si mesmo e depois sorvia leite de uma mamadeira. Indicamos Lima Duarte para o papel de Araponga, mas, como ele já estava escalado para outro trabalho, o escolhido foi Tarcísio Meira, que hesitou em aceitá-lo. Afinal de contas, talvez pegasse mal o charmoso galã das novelas aparecer no vídeo tomando mamadeira. O público adorou.
Esta é a minha versão dos fatos que, por ser verdadeira, evidencia o disparate dessa decisão do novo chefe da Abin de trocar o nome de araponga por carcará. Trata-se, além do mais, de uma providência inócua, uma vez que apelido, não é o apelidado que escolhe. Foi a imprensa que, a partir da novela, passou a chamar de "arapongas" os agentes secretos em geral. Não será uma decisão burocrática que irá mudar isso.
No entanto, se a tal mudança ocorresse, se a imprensa se dobrasse à decisão do diretor da Abin, seus agentes teriam como apelido o nome de um pássaro que se tornou popular graças a um espetáculo teatral também feito contra a ditadura: o show "Opinião", escrito e montado por integrantes do extinto CPC da UNE que, após o golpe de 1964, transformara-se no grupo Opinião. A música de João do Vale -que, com Nara e Zé Keti, integrava o espetáculo- falava de um pássaro malvado, de bico volteado, "que avoa que nem avião" e que, quando divisa uma presa, "pega, mata e come". Nara adoeceu e foi substituída por uma jovem cantora baiana até então desconhecida, chamada Maria Bethânia, que, com sua postura corporal e sua interpretação, tornou aquela música o ponto alto do espetáculo, o primeiro "ato público" contra o regime militar.
Devo esclarecer que tanto faz -para mim e, creio, para o povo em geral- que os agentes da Abin sejam chamados por esse ou aquele apelido, mas ficaríamos todos nós bem mais tranqüilos se eles, no seu comportamento, se mantiverem mais parecidos com as pacíficas arapongas, que só têm garganta, do que com os agressivos carcarás, terror dos bichos menores e indefesos.


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