Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 31, 2005

FERNANDO GABEIRA Globalização e as sementes do equívoco

FOLHA
Livros sobre a globalização ocuparam meu tempo neste fim de ano. Os autores são jornalistas, um do "New York Times", outro do "Le Monde". Se fôssemos aplicar aos dois o próprio critério jornalístico de esquentar as matérias, diríamos que um é favorável, outro é contrário. Mas isto não explicaria quase nada.
"O Mundo É Plano", de Thomas Friedman, já foi traduzido no Brasil e, sob muitos aspectos, é uma apologia daqueles países, ou mesmo setores, que conseguiram se inserir na globalização, aproveitando-se desta oportunidade para prosperar.
Nesse caso estão Índia e China, a primeira sobretudo por formar, desde os tempos de Nheru, grandes engenheiros que não tinham outra saída exceto buscar um emprego qualquer fora do país. Agora, com o processo de terceirização dos serviços dos grandes grupos internacionais, a Índia está tirando o maior proveito possível da inteligência e da formação técnica dos seus quadros.
Quem perde a mala numa viagem interna nos EUA e reclama pelo telefone pode estar falando com um "call center" em Bangalore, pois grande parte desses serviços é feito hoje na Índia.
Um dos bons momentos do livro de Thomas Friedman é quando conta uma fábula africana. Toda vez que um antílope acorda, ele sabe que tem de correr mais que o mais veloz dos leões para sobreviver. Quando o leão acorda, sabe, por sua vez, que tem de correr mais que o mais lento dos antílopes, também para sobreviver. Em suma, não importa se leão ou antílope, é preciso começar a correr cedo.
O processo competitivo acentuado pela globalização levou a inúmeras soluções geniais. Friedman, por exemplo, fala da capacidade do Wal-Mart de organizar seus fornecedores, em criar programas que racionalizem as entregas ou mesmo o rastreamento de cada pacote.
Como repórter nova-iorquino, atribui ao provincianismo do Wal-Mart sua política rígida com os funcionários, política que lhe ameaça o prestígio no mundo. Aliás, depois do livro publicado, a empresa teve de pagar, na semana passada, US$ 157 milhões em indenizações trabalhistas.
Friedman também tem uma visão crítica do processo de destruição ambiental, mas não o dramatiza. Em certos momentos, chega a admitir, numa hipótese, que o preço do petróleo baixe a US$ 10 o barril, algo bastante contraditório com a crise dessa fonte de energia.
Já o livro de Jean-Paul Besset, que foi redator-chefe do "Le Monde" durante dez anos, é um grande libelo contra o processo de globalização por causa dos seus efeitos, inclusive no meio ambiente. Besset acha que chegamos a um momento decisivo e que não se trata mais de luta de classe, muito menos de combates nacionais. Todos precisam se unir para evitar o descontrole que o progresso acarretou, ameaçando o futuro do planeta.
O título de seu livro -"Como Não Ser Mais Progressista, Sem se Transformar num Reacionário"- é bastante elucidativo. Ele começa dialogando com um suposto guardião celeste sobre seus fracassos na Terra, inclusive as idéias de esquerda trituradas pela história. E, a partir daí, procura demonstrar como a crise pode nos levar todos para o buraco, progressistas ou não.
As duas obras provocam no leitor a vontade de lutar. O de Friedman, lutar para que o próprio país entenda a globalização e tire proveito dela. Ele propõe que os americanos se deixem levar pelo espírito da queda do Muro de Berlim e atenuem o impacto do 11 de Setembro. Ele quer um espírito aberto do 9/11 contra a quase paranóia que os EUA viveram desde o 11/9.
No caso brasileiro, tanto as preocupações de Friedman, entusiasta da globalização, como as de Besset, crítico radical, ainda não parecem ter dominado nossa vida política. Se por um lado o país nem se prepara, acabando com excesso de burocracia, investindo na educação, estimulando a criatividade, por outro lado não se prepara também para a crise ambiental como seria necessário.
O resultado é que não somos nem bem apologéticos nem críticos. Apenas vamos tocando o barco, com um acerto aqui, um erro ali. O presidente Lula diz que não queria plantar para que outros colhessem. Isso não é verdade nem para ele -pois algumas vitórias do Brasil na OMC (algodão, aço) acabam ajudando as novas gerações aqui e em outros países do Terceiro Mundo- nem para líderes como Nehru e Mandela, cada um à sua maneira, plantando para muitas gerações posteriores.
Com toda a admiração que tenho por São Paulo, não deixa de ser estranho ver uma luta tão limitada entre suas grandes correntes políticas. Se mergulho no livro de Friedman, sinto uma grande necessidade de união para que se responda a esse processo impiedosamente competitivo no mercado internacional. Se me dedico ao texto de Besset, concluo que ainda estamos longe dos passos necessários para evitar o grande desastre ambiental.
Um presidente que não planta para que outros colham é uma peça difícil de integrar nesse quebra-cabeça. Ainda que os políticos brasileiros possam se consolar com as rivalidades internas. Tanto para um mundo plano como para o mundo em dissolução, elas são apenas uma nota no pé de página.

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