Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 25, 2005

Daniel Piza História da ilusão

OSEP


E-mail: dpiza@estado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Este ano vai ser lembrado por muitos como o da decepção com o governo Lula, disparada sobretudo pela revelação do esquema de distribuição ilegal de dinheiro para o PT e os partidos aliados. Mas há outras decepções que se desdobram dessa. Uma se refere à reação a ela, da parte não só de políticos da situação e da oposição, mas também de intelectuais e jornalistas e da população em geral. Outra é com o próprio país, que segue sempre em seu vagar lento, mesmo quando os ventos sopram a favor.

O PT sempre foi criticado por se dizer de "esquerda", defendendo arremedos utópicos como o "socialismo democrático", ou por ser "radical", agindo como oposição leviana (conforme reconhece hoje o próprio presidente Lula), que sempre votou contra coisas como Plano Real, privatização ou reforma da Previdência. Seus defensores acreditavam que o partido fosse o porta-voz do bem-estar nacional, capaz de tirar da pobreza a maioria da população, subjugada por uma oligarquia que se reveza no poder há 500 anos, etc.

Quando o PT virou casaca, lançando aquela carta ao povo brasileiro em meados de 2002, depois de Lula levar dois sustos na campanha (Roseana Sarney e Ciro Gomes), a aclamação veio dos dois lados. Os antigos críticos passaram a aplaudir a "maturidade" do partido, que teria tomado, por exemplo, consciência da austeridade fiscal para impedir a volta da inflação. Os petistas, mesmo históricos, passaram a acreditar nesse meio-termo social-democrático, uma conciliação de estabilidade monetária e investimento social que ao menos seria um ritual de passagem para um "novo" Brasil. Nesse processo tipicamente brasileiro de acomodação, calcado na simbologia de Lula como "alguém que veio lá de baixo", o ilusionismo coletivo se instalou. A aprovação do governo foi aos píncaros; raríssimos articulistas não se deixaram levar pela moda.

Mesmo com o crescimento medíocre do primeiro ano, o clima continuou. E mesmo com a adoção cada vez mais rígida do modelo macroeconômico do governo anterior, que consiste em aumentar juros para pagar uma dívida que os juros só fazem aumentar (o "enxugar o gelo" que Dilma Rousseff diria muito tempo depois), Lula tinha a reeleição garantida. Sua exaltação da ignorância; as gafes como a estrela do PT num jardim público e o Aerolula; os escândalos como o de Waldomiro Diniz; os fiascos do Fome Zero e do Primeiro Emprego; os entendimentos com José Sarney e outros oligarcas regionais – nada disso era suficiente para que as pessoas percebessem a farsa daquele "amadurecimento".

Então vieram à tona os depósitos feitos em dois bancos por ordem do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, guiado pelo ministro José Dirceu, e do publicitário Marcos Valério, que tinha contas do Banco do Brasil e de muitas outras estatais, para parlamentares em vésperas de votações. Depósitos documentados; relações testemunhadas. E mais uma série de falcatruas apareceu: dinheiro em cueca, depósito em "cash" para Coteminas, favorecimentos a parentes em empresas estatais ou privadas, licitações viciadas ou ilícitas, etc., etc.

O governo reagiu da maneira mais grotesca, a ponto de Lula reconhecer o crime do caixa 2, pelo qual seu partido não foi punido. A oposição, quase toda de rabo preso, se bastou com as cassações de Roberto Jefferson e Dirceu. Os intelectuais e jornalistas, salvo meia dúzia, foram na linha de Marilena Chauí, para quem a crise foi fabricada pela mídia e conspirada pela "direita". A maioria dos eleitores se desiludiu, diante de tais fatos, e desistiu de acreditar em Lula. Também contemporizou, pois "todos roubam mesmo" e a economia não está em recessão, e não teve a dignidade de ir às ruas e protestar. Deve estar aí, à espera de uma nova ilusão.

Para a minoria que enxerga a realidade, tais reações foram tão atrozes quanto os casos de corrupção. Eis de novo, nítido "como nunca antes" (para usar a expressão que Lula repete todo dia), o Brasil velho – que não é sério, que perpetua privilégios à sombra do poder, que não consegue sair dos interesses mais imediatos e rasteiros. Eu sempre disse que o problema do PT não era ser diferente, era ser igual. O governo Lula conseguiu ser pior que o FHC porque, entre outras coisas, teve um cenário internacional muito mais favorável e, mesmo assim, não elevou a média de crescimento econômico. Tampouco deixou marcos históricos. Teve méritos tão escassos – e herdados, como o Bolsa Família e o salto exportador – que não compensaram o aprendizado que sua passagem pelo poder teria até mesmo às avessas. Fez uma política externa bravateira e improdutiva. E fez muito pouco nas áreas que mais importam: educação, tecnologia, infra-estrutura, corte de impostos, reforma política.

Não se trata apenas de trocar a oligarquia que nos dirige, mas a mentalidade dominante dos botequins e arquibancadas às diretorias e universidades. O futuro dá muito trabalho.

DE LA MUSIQUE

É uma iniciativa extraordinária a que a Philarmonia Brasileira acaba de realizar com Villa-Lobos. Primeiro, lançou o CD Villa-Lobos em Paris, em que o maestro Gil Jardim recria o primeiro concerto que o compositor fez na França, em 1924. Agora, publicou o livro com CD-ROM O Estilo Antropofágico de Heitor Villa-Lobos, também de Gil Jardim. É uma tese defendida na USP sobre a peculiar mistura de influências – Bach com Stravinski – que Villa-Lobos fez. O CD-ROM traz a partitura das Bachianas Brasileiras nº 7, com proposta de edição crítica, e uma gravação da obra, para ouvir acompanhando a pauta. Traz também partitura e gravação do Choros nº 7, "Settimino". O contraponto clássico permitiu a ele abrir a música para idéias simultâneas que trazem referências da natureza e do folclore, numa rapsódia texturizada por timbres e ritmos. Foi essa orquestração, aliás, que fascinou o Tom Jobim de Matita Perê.

RODAPÉ (1)

A biografia Carmen, de Ruy Castro (Companhia das Letras), é um vira-página, como dizem os anglófonos, pela fluência narrativa e pela imbricação de três universos interessantes – música popular da era do rádio, clima patriótico do getulismo e Hollywood – num momento peculiar. Menos detalhismo cairia bem, porque o livro tem quase 600 páginas; e Ruy exagera ao descrever Carmen como se fosse linda e ao qualificá-la de maior cantora brasileira da história. Mas ela inventou uma dicção deliciosa, ideal para marchinhas de carnaval e o samba-exaltação de Ary Barroso e dessa fase de Dorival Caymmi; e é uma doce ironia que, com esse currículo, ela tenha sido criticada por "americanização". Em poucos segundos, vendo-a nos filmes, esquecemos seu tipo caricatural e nos encantamos com seus ademanes manuais e vocais.

RODAPÉ (2)

Ótima iniciativa é também o livro Di Cavalcanti – Um Mestre Além do Cavalete, de Piedade Epstein Grinberg (Metalivros), que destaca o trabalho dele como artista gráfico e ilustrador. Do traço art nouveau ao multiplano modernista, passando pela caricatura com influência de J. Carlos e Belmonte e pelo precioso álbum Fantoches da Meia-Noite, seu talento para o desenho e a composição é admirável. Nas cenas de samba, como a capa de disco de Noel Rosa, ou nas ilustrações de A Morte e Morte de Quincas Berro d'Água, de Jorge Amado, ele atinge seu apogeu. Um desenhista que merece retrospectiva já.

RODAPÉ (3)

Ricardo Bonalume Neto, na Folha, diz que George Orwell, de quem organizei e prefaciei coletânea de ensaios, Dentro da Baleia (Companhia das Letras), não dedurou intelectuais e artistas para o governo britânico. Bonalume acha que Orwell "simplesmente fez uma lista de intelectuais notórios de esquerda, pró-soviéticos, para que fossem reconhecidos como tais". Ah, tá.

A ARTE DE EXPOR

É um prazer ler sobre a mostra Mimesis: Realismos Modernos, do belo museu Thyssen-Bornemisza, em Madri, que dá destaque, entre outros, a pinturas dos anos 30 e 40 de Balthus e Edward Hopper, sobre quem já fiz paralelo em ensaio. "A noção dos realismos como tendências retardatárias é uma falsificação da história da arte", disse o curador, Tomàs Llorens. Para teóricos da vanguarda nos anos 50 e 60, só a arte abstrata e a conceitual seriam portadoras do novo, do futuro, e o figurativismo estava morto. Não espanta que as artes visuais tenham caído na retórica-sobre-o-nada que predomina nas bienais.

POR QUE NÃO ME UFANO

Tomara que o Guia dos Vinhos Brasileiros, de Eduardo Viotti (Market Press), ajude a derrubar alguns preconceitos. Uvas como merlot (Reservas Miolo e Dom Cândido), cabernet sauvignon (Salton, Marco Luigi), tannat em "assemblages" (Don Laurindo Gran Reserva), malbec, carmenère e até mesmo shiraz (Terranova), dão vinhos tintos três estrelas, que ainda deixam a dever aos melhores argentinos e chilenos, mas vêm evoluindo muito nos últimos anos; as safras 2004 e 2005 foram as melhores da história. Há também brancos de chardonnay (Salton, Miolo) e gewurztraminer (Valduga). O forte, como se sabe, são os espumantes, proseccos dessas mesmas castas e casas. Festeje.

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