Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Carlos Alberto Sardenberg A culpa é do governo

ESTADÃO


Terminamos um ano, iniciamos outro com alguns temas no mesmíssimo ponto em que se encontram há tempos: sem saída. Salário mínimo, por exemplo. Querem outro? Juros altos.

Discute-se: qual o salário justo? Ora, não existe salário justo, existe apenas o que o governo pode pagar, já que cada real a mais no mínimo representa uma despesa anual de R$ 160 milhões só para a Previdência. Acrescentem-se aí as demais pessoas que recebem o mínimo no setor público – desempregados, idosos, pensionistas, funcionários e terceirizados de prefeituras e governos estaduais – e a despesa total passa fácil dos R$ 300 milhões anuais, a cada real a mais no salário mínimo.

De onde tirar o dinheiro? Duas possibilidades: do bolso do contribuinte ou de outras pessoas que recebem do governo, grupo que inclui desde os beneficiários do Bolsa-Família até, por exemplo, trabalhadores em obras públicas, passando, por certo, por funcionários de todos os demais setores da administração. A coisa fica séria só a partir desse ponto. O bolso do contribuinte já foi expropriado há tempos. E a clientela do governo é cada vez maior. Não fecha. E continua sendo necessário tirar algum de alguém.

Por outro lado, há desperdício em todo o setor público. Alguns são óbvios: parlamentares, com a convocação extraordinária, vão receber oito salários nos próximos três meses. O trabalho extra será de dias, se tanto.

Nem é tanto dinheiro, se comparado com o tamanho do orçamento federal. Mas continua sendo despesa totalmente desnecessária. Não representa nenhum serviço extra para a população contribuinte. Quanto desperdício desses haverá pelo imenso setor público? Pensem nas Assembléias Legislativas, nas Câmaras Municipais.

Quem freqüenta repartições públicas tem sempre uma sensação dividida. Parece que há gente demais e que nada funciona a contento. E é verdade. Parece que o pessoal tem a extrema capacidade de alocar gente onde não é preciso – e ganha mais, como nas burocracias do Legislativo e do Judiciário – e deixar faltar ali, na linha de frente, policiais nas ruas, médicos no primeiro atendimento, professores nas salas, onde se ganha menos.

Resumo da ópera: está na cara que é preciso e que dá para fazer uma profunda reforma no setor público. Os governos vão acumulando funcionários e programas em camadas. Cada um que entra acomoda a sua. O governo seguinte mantém a anterior, que segue por inércia, e instala a sua própria. Muitos programas já não servem para nada e continuam simplesmente porque estão numa rubrica do orçamento.

A reforma não é propósito do governo Lula. Ao contrário: tendo como base política boa parte dos sindicatos de funcionários públicos, o governo vê o problema pela visão segundo a qual faltam funcionários e falta salário. Na verdade, é sempre fácil provar essa tese.

Basta apanhar um professor de universidade, com doutorado aqui e lá fora, autor de trabalhos em revistas importantes, ganhando R$ 6 mil por mês, menos da metade do que recebe um deputado federal. Injustiça, tem razão o pessoal do governo Lula.

Mas na mesma faculdade se encontrará, com facilidade, um professor na mesma posição na hierarquia universitária que dá um dia de aula por semana e ganha a mesma coisa.

Era o caso de demitir esse aí e dobrar o salário do outro. Mas não pode. Todos têm de ganhar a mesma coisa, pela posição, que se conquista pela inércia, e não por eficiência ou produtividade. Ganhe o Nobel, não faça nada, o salário é parecido. Para ter dez eficientes é preciso pagar uns 20. Não pode funcionar. Isso ficou claro com outras coisas, a saber: no Brasil se paga imposto demais, o governo gasta demais (e mal), deve muito e os juros são muito elevados. Está tudo ligado.

Os juros reais, descontada a inflação, estão rodando entre 12% e 13% ao ano. A média dos três primeiros anos de Lula fica um pouco acima de 11% – elevadíssimos, e não os mais baixos dos últimos 20 anos, como o presidente diz.

Há dois debates sobre isso no momento. De um lado, analistas que estão totalmente de acordo com o atual modelo de política econômica sustentam que a taxa básica de juros já poderia estar em torno dos 10% reais, um pouco abaixo – nível, aliás, obtido pela gestão de Armínio Fraga no Banco Central (BC), na gestão FHC. E que pode ser obtido de novo com uma boa administração do BC, mantidas todas as demais condições.

Mas não resolve o problema de médio prazo. Os países emergentes estáveis, classificados no "grau de investimento" seguro, conseguem juros reais de 2% a 3% ao ano. Para o Brasil se aproximar disso só tem uma saída: uma profunda reforma do setor público, incluindo a volta das privatizações, de modo a, na seqüência, reduzir a despesa corrente, a dívida líquida e, finalmente, a carga tributária. Aí os juros reais poderão cair para algo em torno dos 6% ao ano, ainda acima dos melhores emergentes. Para chegar lá serão necessárias as tais reformas microeconômicas, que garantam a propriedade e os direitos dos credores e facilitem os negócios.

A tese do ajuste das contas públicas ganhou amplo apoio entre analistas econômicos das mais variadas tendências. No nível político, o entendimento da questão está começando pelo avesso: há forte restrição ao aumento de impostos, como o demonstrou a derrubada de algumas medidas provisórias no Congresso. Mas os políticos, no Parlamento e no Executivo, continuam achando que dá para gastar mais. O presidente Lula, inclusive, mandou que os ministros gastem mais. Não fecha, assim como não fecha o debate sobre o salário mínimo.

Mas, como não tem caixa 2 na aritmética e como não se quer mais aumentar impostos, alguém vai ficar sem receber o seu. E aí vai ficando claro que é preciso dar uma mexida em todo o setor público. Quem sabe, nas eleições de 2006? Sobretudo agora que o País deve ter aprendido que candidaturas como a de Lula em 2002, que prometem a grande mudança para tudo, terminam em decepção.


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