Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 16, 2005

Um outro capitalismo LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

FSP

Haverá algo em comum entre o fracasso dos Estados Unidos em reagir adequadamente à tragédia que se abateu sobre Nova Orleans com o furacão Katrina e as eleições na Alemanha? Creio que sim: enquanto os americanos pagam o preço de não construir uma sociedade solidária, a Alemanha, ainda que determinada a fazer reformas, se revela disposta a manter seu sistema social. Mais amplamente, os europeus estão reafirmando que é possível um outro capitalismo.
Depois de 30 anos gloriosos, após a Segunda Guerra Mundial, a solidariedade interna de cada país e a solidariedade entre os países foi posta em cheque pelo aumento dos preços das commodities, que ocorre a partir da primeira crise do petróleo, e pelo surgimento dos primeiros países em desenvolvimento que exportavam bens manufaturados para o primeiro mundo.
Os primeiros "novos países industriais", como então foram chamados, eram a Coréia, Taiwan, Singapura, Brasil e México. O fato de usarem mão-de-obra barata para exportar não mais produtos primários complementares -os produzidos no primeiro mundo-, mas bens industriais e agrícolas diretamente competitivos, representou imediatamente uma ameaça para os países ricos -particularmente para seus trabalhadores. Para manter seus padrões de vida, teriam que passar por um período de desindustrialização e de transformações internas dolorosas.
O que podia fazer o centro rico diante desse fato novo, além de, no médio prazo, transferir sua mão-de-obra altamente qualificada da indústria para serviços com alto valor adicionado?
Para garantir sua competitividade, podia propor reformas no plano interno -as reformas neoliberais- que reduzissem os salários diretos e indiretos de seus próprios trabalhadores; no plano internacional, podia propor reformas aparentemente da mesma natureza aos países de desenvolvimento médio, mas que, na verdade, desorganizavam suas economias.
As reformas orientadas para o mercado, que começaram nos Estados Unidos de Reagan e na Grã-Bretanha de Thatcher, tinham o objetivo de reduzir os salários indiretamente por meio da redução do Estado social e da privatização de serviços públicos monopolistas. Em relação aos países de desenvolvimento médio que agora exportavam manufaturados, os três carros-chefe das reformas propostas foram a abertura comercial, o reconhecimento da propriedade intelectual e a estratégia de crescimento com poupança externa acompanhada de abertura financeira internacional.

Os países europeus estão reafirmando que é possível um outro tipo de capitalismo além daquele vigente nos EUA

Ao passo que, entre os países ricos, as reformas neoliberais foram efetivas em reduzir salários, aumentar a competitividade e facilitar a retomada do desenvolvimento daqueles países que as adotaram, entre os países de desenvolvimento médio, como se poderia esperar, o resultado foi inverso: desenvolveram-se aqueles que não aceitaram as reformas, como China e Índia; semi-estagnaram aqueles que as aceitaram, como Brasil e Egito. Lá, as reformas resolviam no curto prazo um problema efetivo; aqui, principalmente a abertura financeira e a busca de capitais externos desorganizaram as economias nacionais.
Os governos dos países ricos não precisavam se comprometer com as políticas econômicas que desorganizavam as economias dos países de desenvolvimento médio. Tinham outras formas de se defender. De qualquer forma, o fracasso dessa empreitada em relação aos países dinâmicos da Ásia tornou inútil o esforço.
Será, porém, que os países europeus que construíram democracias mais representativas e mais solidárias que os Estados Unidos poderão ser competitivos sem destruir seu sistema social?
A Alemanha está dizendo que é possível, apesar do desemprego que enfrenta. A Espanha, a Holanda, os países escandinavos e a Grã-Bretanha, nestes últimos oito anos, mostraram que isso é possível realizando reformas que preservavam o Estado social. Os trabalhistas na Grã-Bretanha estabeleceram o salário mínimo, tornaram os impostos razoavelmente mais progressivos, aumentaram em cinco pontos percentuais o gasto em educação e saúde e apresentaram um excelente desempenho econômico. Com isso, melhoraram a distribuição de renda. A França, a Alemanha e a Itália apresentaram desempenho pior por motivos diversos, entre os quais, saliento, não terem feito a reforma da gestão pública ou reforma gerencial do Estado que os países citados, excetuada a Espanha, fizeram a partir dos anos 80.
É verdade que a solidariedade interna tem um custo, porque a competição internacional é dura. Mas é um custo compensado por vantagens importantes relacionadas com maior coesão social, que é a origem de maior eficiência. Por outro lado, os custos da falta de solidariedade e os de um individualismo exacerbado são altos, como vimos na Guerra do Iraque e, agora, em Nova Orleans. Os países europeus estão mostrando que é possível realizar reformas sem destruir essa solidariedade. Estão reafirmando que é possível um outro tipo de capitalismo além daquele vigente nos Estados Unidos.

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