Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 16, 2005

FERREIRA GULLAR De arma na mão

FSP

O principal argumento dos que se opõem à proibição da venda de armas de fogo é que, se o bandido está armado, o cidadão comum tem o direito de também se armar. O que é um argumento legítimo em filmes do faroeste, onde impera a lei da bala.
Sim, porque, na vida real, a coisa se passa de maneira muito diferente: termos uma arma na cintura ou na gaveta da cômoda não quer dizer que estamos protegidos do assaltante armado; na maioria das vezes, é o contrário, pois o fato de estarmos armados pode nos levar a atitudes desastradas e desastrosas.
E sabem por quê? Porque não basta possuir uma arma para ser capaz de fazer uso dela. Além disso, nem todo mundo tem sangue-frio (ou coisa pior) para ser capaz de matar uma pessoa, ainda que seja um bandido. Eu, pessoalmente, não tenho.
Imaginemos a cena. Façamos de conta que tenho uma arma em casa, guardada em alguma gaveta. Acordo ao ouvir um ruído estranho na sala. Será que o gato decidiu bagunçar meu coreto a essa hora da madrugada? Mas vejo que não: ele ressona enrodilhado e tranqüilo ao pé da cama. Corre-me um arrepio de medo pelo corpo: pode ser um fantasma?! Não, não pode ser, porque não acredito em fantasmas! Isto é, acho que não acredito...
A essa altura, penso ouvir passos no corredor, ou melhor, algo parece se mover ali... Seria meu neto Mateus? Não pode ser, porque ele não tem a chave do apartamento e, mesmo que tivesse, não entraria em minha casa a essa hora e desse modo. Mais assustado ainda, sinto que aquela presença estranha se aproxima de meu quarto.
- E se for um ladrão?!
A hipótese de que poderia ser um ladrão me deixa ainda mais assustado do que se fosse um fantasma.
- Se é um assaltante, deve estar armado! -digo a mim mesmo e acrescento: por sorte, ainda não tinha sido aprovada a proibição da venda de armas; pude comprar a minha.
E, ao pensar isso, me ocorre que não me lembro de onde a guardei, o que me causa enorme desagrado, mas não surpresa, já que quase todas as coisas que guardo somem, nunca consigo saber onde as guardei. E isso se tratando de coisas que estou sempre usando; imagine agora um revólver, que está guardado desde o dia em que o comprei.
- Não vou encontrá-lo! -digo para mim mesmo em pânico. E o ladrão, armado, está a poucos passos de mim, no corredor!
As possibilidades são várias. Lembro-me de ter decidido que o melhor lugar para guardar o revólver era a gaveta da mesa de cabeceira, aqui ao lado da cama, pois estaria a meu alcance no caso de um assalto como esse que ocorre agora. Sim, foi aqui que o guardei! E me volto, abro a gaveta, tateio com uma das mãos. Nada de revólver!
- Mas tem que estar aqui!
Penso em acender a luz do quarto, mas logo desisto: o assaltante ficaria sabendo que estou acordado. Insisto em buscar o revólver na gaveta, levanto-me cuidadosamente para melhor procurá-lo, quando me vem à lembrança que o tirara dali. Sim, quando Paloma esteve aqui com Francisquinho, achei melhor pôr o revólver noutro lugar, fora do alcance do menino... O problema é: onde?
Era urgente lembrar onde pusera a arma, porque o ladrão não iria ficar esperando no corredor até que a localizasse.
Admitindo-se que ele preferiu se dirigir ao escritório, que está sempre de porta aberta e, àquela hora, vazio, dediquei-me a tentar descobrir onde, pela lógica, teria escondido o maldito revólver.
- Terá sido no guarda-roupas? Mas, se foi ali, em qual das gavetas? Tem quatro gavetas externas e várias menores internas, onde guardo camisas, cuecas, meias... Na gaveta das cuecas não foi, porque essa eu abro todos os dias... E me vem então um pensamento aterrador: vai ver pus na estante menor do escritório. Se foi, estou perdido; o assaltante vai ter dois revólveres e eu, nenhum! É azar demais! Começo a me arrepender de ter comprado a arma.
Mas aí uma luz acende no meu cérebro e me faz lembrar do lugar exato onde guardara a arma: sim, na única gaveta da cômoda que tem fechadura! Foi lá, tenho certeza. Mas e a chave da gaveta? Onde será que pus a chave da gaveta da cômoda?!
Vamos admitir, por mais implausível que seja, que me lembrei de onde pusera a chave. Vou lá, pego-a, abro a gaveta e o revólver está efetivamente lá. Seguro-o, nervoso, saio andando na direção do bandido, que, supõe-se, está no escritório buscando o que roubar. Da porta, vejo-o agachado, mexendo na gaveta da escrivaninha. Ao clarão da luz da rua que entra pela janela, percebo que se trata de um garoto de uns 16 anos e que está armado. Aponto o revólver, mas não consigo atirar: é um menino. Fico com a arma apontada e grito-lhe:
- Largue a arma. Está preso!
Ele se rola no chão e, deitado, dispara um tiro certeiro em meu peito e me mata!
Antes de soltar o último suspiro, ainda penso:
- A polícia é que deve cuidar da segurança dos cidadãos. Afinal de contas, para que se paga imposto?

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