Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 30, 2005

Dirceu volta para o centro da crise da Veja

Ele assusta o governo

No olho do furacão, às vésperas de seu
duelo com Roberto Jefferson, o ex-ministro
José Dirceu manda recados ameaçadores,
inclusive a Lula, para evitar que sua cabeça
seja dada como prêmio à oposição


Otávio Cabral e Julia Duailibi

Alex Ribeiro/Futura Press
ARQUIVO VIVO
Dirceu se arma com memória do governo e da campanha para fugir à cassação desejada também pelo Planalto


O esquema clandestino de arrecadação de dinheiro e repasse a parlamentares aliados do PT, que ficou conhecido como mensalão, ganhou na semana passada um rosto de comando: o do ex-todo-poderoso ministro-chefe da Casa Civil, deputado José Dirceu. Desde que estourou o escândalo de corrupção no governo, em maio, o ex-ministro jurava desconhecer a estrutura milionária montada por seus colegas petistas para comprar apoio político e financiar campanhas eleitorais. Em depoimento à CPI dos Correios, Renilda Santiago Fernandes de Souza, mulher do publicitário Marcos Valério, o operador do esquema, disse que José Dirceu não só sabia de tudo como ainda se reuniu com representantes dos bancos envolvidos no caso, Rural e BMG, para tratar do assunto. Se confirmadas, as informações de Renilda comprovam o que havia muito se suspeitava: José Dirceu era o mandachuva do mais surpreendente escândalo de corrupção descoberto desde o impeachment do presidente Fernando Collor. Depois da revelação, a oposição e petistas importantes passaram a enxergar na cassação do mandato do deputado a melhor alternativa para abreviar a crise. Disposição que deverá aumentar com a revelação de que o sujeito que cuidava da agenda e despesas pessoais do ex-ministro estava na lista dos sacadores de uma conta da agência SMPB, de Marcos Valério, no Banco Rural (veja reportagem). O problema é que José Dirceu avisou que não vai aceitar assumir o papel de chefe de quadrilha – e ameaça envolver o presidente Lula.

 

Lula Marques/Folha Imagem
AMOR E ÓDIO
Parceria abalada: de homem forte do governo, Dirceu se distanciou de Lula, a quem acusa de ser traidor, desleal e ciumento

O ex-ministro é um arquivo dos acontecimentos recentes da política brasileira. Ele foi o responsável pela construção do PT nos moldes que se conhece, promovendo a chefes figuras virtuosas como José Genoíno, Delúbio Soares, Silvio Pereira e Marcelo Sereno.

Foi também o arquiteto da bem-sucedida campanha eleitoral de 2002, quando conseguiu atrair empresários e costurar alianças com outros partidos. Viu-se incumbido, ainda, da montagem do governo em todas as esferas, atendendo a interesses políticos legítimos e também aos inconfessáveis. Como chefe da Casa Civil, comandou a máquina administrativa e conhece como ninguém as áreas de interesse. José Dirceu tem a memória boa e a ruim do governo Lula. "Ele nunca dividiu com ninguém o mapa político dos cargos na administração", conta um ministro. "Fiz tudo com o conhecimento e o aval do presidente", repete Dirceu, dando a entender que, para se salvar, não hesitará em chantagear o presidente Lula.

 

Ana Araujo
Fernando Bizerra Jr../EFE

JOGADA EM FAMÍLIA
O casal Fernandes de Souza se esqueceu de muita coisa, mas se lembrou de que Dirceu sabia do esquema

Os recados enviados pelo ex-ministro são inequívocos. Peça-chave no escândalo, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares confessou ser o responsável pela máquina clandestina de arrecadação de recursos para campanhas políticas. Delúbio, enfatize-se, foi transformado em dirigente do partido pelas mãos de José Dirceu. Desde o início do governo, transitava livremente pelos principais gabinetes de Brasília como se fosse autoridade. O ex-tesoureiro era visto com freqüência no 4º andar do Palácio do Planalto, onde funciona a Casa Civil, e chegou a integrar a comitiva presidencial em viagens ao exterior. Nos últimos dias, porém, Dirceu tem dito a interlocutores que suas relações com Delúbio não eram tão boas como se apregoa. Aliás, seriam até muito ruins. "O Delúbio estava descolado, agindo por conta própria, falando diretamente com o presidente", disse o ex-ministro. O afastamento teria acontecido por divergências políticas. O ex-tesoureiro queria ser candidato ao governo de Goiás, mas Dirceu considerava a idéia imprópria. Delúbio, então, teria ido buscar apoio para a empreitada com o presidente Lula, seu velho amigo. "Se forem conferir quem o Delúbio visitou mais vezes no Palácio, vocês vão ver que o presidente ganha de longe", diz uma assessora do ex-ministro.

O curioso é que, ainda assim, Delúbio fez questão de preservar Dirceu em seu depoimento à CPI, dizendo que o ex-ministro não sabia nadica de nada dos empréstimos bancários malandros contraídos pelo PT e avalizados por Marcos Valério. Em outra demonstração um tanto peculiar de relação estremecida, Delúbio acrescentou um lance ao jogo de chantagem de Dirceu, mandando um torpedo contra Lula – o ex-tesoureiro fez vazar uma parte do depoimento que deu ao procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza. No depoimento, Delúbio afirma que usou recursos do caixa dois do PT para financiar a festa da posse de Lula. Por último, ninguém consegue expulsar Delúbio do PT, apesar de todos os seus trambiques, com medo da reação do ex-ministro. Isso que é inimizade.

 

Dida Sampaio/AE
Nilton Fukuda/AE
EFEITO DOMINÓ NO PT
Dirceu tenta se livrar da responsabilidade pela crise que abala o PT e o governo, mas seus aliados no partido vão caindo um por um, todos abalados pelas provas de corrupção. No sentido horário: Silvio Pereira (acima, à esq.), que caiu por ter recebido um jipe de um empresário; Marcelo Sereno, afastado da Casa Civil e da direção do partido; Genoíno, enrolado com os dólares da cueca; e Delúbio, também homem de Lula
Bruno Stuckert/Folha Imagem
Dida Sampaio/AE

Delúbio não é o único personagem da crise que o ex-ministro José Dirceu e sua turma tentam aproximar perigosamente do presidente Lula. Eles andam espalhando por Brasília que o presidente esteve reunido com o publicitário Marcos Valério em pelo menos duas situações: num encontro formal na Granja do Torto e num despretensioso cafezinho no gabinete palaciano. Ambos teriam sido encerrados com o presidente agradecendo a Valério pela ajuda que vinha dando ao PT. "Lula conversa com Deus e com todo o mundo. É impossível fazer a averiguação prévia de todo mundo que entra lá. Vocês deveriam verificar", insinuou na semana passada um dos mais próximos assessores de Dirceu, ao ser indagado sobre as tais visitas. A Presidência da República informou oficialmente que Lula nunca se encontrou com Marcos Valério, seja no Palácio do Planalto, na Granja do Torto ou no Palácio da Alvorada. Embora negada peremptoriamente, a história é explosiva, se comprovada, e prospera como rastilho de pólvora, como desejam os amigos do ex-ministro.

Dirceu também fustiga Lula por outro lado. Comenta que o presidente tinha ciúmes de sua capacidade administrativa. Todas as vezes que apareciam notícias de que ele deixaria o governo, contou o ex-ministro a um amigo, havia uma fieira de pedidos a seu favor. Isso irritava o presidente, que se sentia menor do que seu ministro da Casa Civil. A situação, de acordo com relatos de Dirceu, chegou a tal ponto que o presidente passou a não convidá-lo para eventos e encontros importantes. O ex-ministro se considerava o sucessor natural de Lula. Antes da campanha de 2002, a quarta do PT, queria ser o candidato do partido, mas, como Lula não abriu mão, ele o apoiou e ajudou a construir sua vitória. Esperava, como sinal de gratidão, que Lula fizesse dele candidato à sua sucessão, em 2006 ou 2010. Em lugar disso, na sua opinião, foi traído. O ex-ministro diz que, por culpa de Lula, saiu do governo de maneira humilhante. Afirma que decidiu deixar o cargo logo depois das primeiras acusações do deputado Roberto Jefferson de que ele seria o chefe do mensalão. A disposição, porém, durou pouco. Dirceu diz que foi convidado para um jantar com o presidente na Granja do Torto. Na ocasião, comunicou a Lula que pretendia deixar o governo para não criar constrangimentos, e que também precisava de tempo para se defender. Lula teria pedido para que ele ficasse. O então ministro saiu do Torto se sentindo prestigiado e decidido a enfrentar a crise ainda como homem poderoso. Dois dias depois do jantar e horas após o famoso discurso de Jefferson em que ele aconselha Dirceu a deixar o governo, foi chamado ao gabinete do presidente. "Acho melhor você sair", disse Lula, de maneira brusca. Devido ao comportamento errático do presidente, segundo Dirceu, ele e o governo se transformaram em reféns de Roberto Jefferson. Ao narrar esse episódio aos seus assessores, Dirceu se referiu a Lula com os mesmos termos que um torcedor de futebol costuma dedicar ao juiz que marcou um pênalti injusto contra seu time.

Dirceu não tem dúvidas de que ele é uma espécie de troféu para a oposição e que pode ser vítima de uma conspiração de ex-aliados. Ele sabe que tem gente no governo que gostaria de ver sua cabeça numa bandeja. E tem mesmo. O Palácio do Planalto não duvida de que o escândalo do mensalão resultará em baixas de todos os lados e negocia com a oposição uma saída que atenda aos interesses políticos dos dois lados. Em alguns gabinetes palacianos, correu na semana passada uma lista com os nomes dos parlamentares que deverão perder o mandato. O governo até nomeou um interlocutor para discutir com a oposição a fila da guilhotina. José Dirceu é o primeiro nome da lista oficial. O algoz petista é o secretário-geral do PT e ex-ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini. Em conversas recentes com líderes da oposição, entre eles os pefelistas Jorge Bornhausen e José Agripino e os tucanos Tasso Jereissati e Arthur Virgílio, Berzoini ofereceu a cassação dos petistas Dirceu, João Paulo Cunha, Paulo Rocha e José Mentor, além da de outros líderes aliados, como Valdemar Costa Neto e Sandro Mabel, do PL, José Janene, do PP, José Borba, do PMDB, e Roberto Jefferson. Em troca, quer a preservação de Lula e a entrega de alguns oposicionistas, como o presidente do PSDB, Eduardo Azeredo, que usou o valerioduto em sua campanha ao governo de Minas Gerais, em 1998, e o pefelista Roberto Brant, que se beneficiou do esquema em 2002. A oposição topou.

 

Dida Sampaio/AE
J. F. Diorio/AE
NAS MÃOS DE AMIGOS E INIMIGOS
Na semana de seu depoimento, Dirceu acompanha os passos de Berzoini (acima, à esq.), que negocia sua cabeça com a oposição, usa Mentor (acima, à dir.) para mandar suas ameaças e se preocupa com o futuro do cambaleante João Paulo
Celso Junior/AE

Ao tomar conhecimento da tal lista, Dirceu contra-atacou com mais uma ameaça. Recluso em seu apartamento e preparando a defesa que apresentará nesta terça-feira ao Conselho de Ética da Câmara, o ex-ministro recebeu uma comitiva de três deputados petistas, não por acaso todos pilhados sacando dinheiro das contas de Marcos Valério no Banco Rural – Paulo Rocha (470 000 reais), José Mentor (120 000 reais) e Professor Luizinho (20 000 reais). Dirceu também conversou com o ex-presidente da Câmara deputado João Paulo Cunha (50 000 reais), que pensou em renunciar ao ser descoberto, mas mudou de idéia diante da nova estratégia do ex-ministro. O recado embutido nesses encontros: eles estão unidos, o que significa dizer que, se preciso, vão emparedar o governo. A turma de Dirceu considera equivocada a manobra para proteger o presidente, atribuída ao ministro Márcio Thomaz Bastos. Por trás dela, haveria, inclusive, reflexos de uma rixa antiga entre Dirceu e o ministro da Justiça, a quem sempre criticou por não ter o mínimo controle sobre a Polícia Federal. A divergência entre os dois chegou ao ápice com a prisão do publicitário Duda Mendonça no ano passado. Dirceu soube do fato e telefonou para o ministro Márcio Thomaz para perguntar se era verdade. O ministro foi verificar e disse que a notícia não procedia. Dirceu, que estava num jantar, viu pela televisão o amigo Duda sair preso de uma rinha de galo. "É muita incompetência", esbravejou.

O problema de Dirceu é que, embora repita que nada sabia sobre o esquema ilícito de arrecadação, ninguém acredita. Renilda disse, sem ser perguntada, que ouviu de Marcos Valério, que por sua vez teria ouvido de Delúbio Soares, a informação de que o ex-ministro sabia do caixa dois e até se encontrou com representantes dos bancos envolvidos no escândalo. Após a denúncia, Dirceu primeiro se calou e depois afirmou que não se lembrava do encontro. Só após o Banco Rural ter emitido uma nota confirmando a reunião é que sua memória, sempre muito boa, funcionou. Mas o tema da reunião nada teria a ver com empréstimos ou pagamentos de campanhas. A versão oficial, anunciada pelo Rural e confirmada por Dirceu, é que os banqueiros estariam interessados em comprar o Banco Mercantil de Pernambuco, que está em processo de liquidação. Nada mais. Na reunião, Dirceu teria falado muito sobre economia e, só no finalzinho, um pouco sobre o que interessava, e ainda assim para dizer que trataria do assunto após as eleições municipais. Por que o ministro-chefe da Casa Civil trataria de um tema financeiro completamente fora das atribuições de seu cargo? Talvez pelos milhares de razões que levaram seu "secretário particular", Roberto Marques, a constar da lista de pessoas autorizadas a sacar dinheiro de uma conta de Marcos Valério no Banco Rural, como se verá  nas paginas seguintes

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