Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 19, 2005

VEJA Roberto Pompeu de Toledo
Entre cavalcanti e severino

No novo presidente da Câmara
convivem, de modo equívoco e
perturbador, duas porções opostas

O nome Severino Cavalcanti é uma contradição em termos. Em Pernambuco se diz que o estado é dividido entre duas categorias: a dos cavalcantis e a dos cavalgados. O nome Cavalcanti faz supor, portanto, que seu portador ocupa a metade de cima, nos atropelos da cavalgada. Mas o nome Severino é de outra extração. João Cabral de Melo Neto assim o caracterizou, no poema Morte e Vida Severina:

"Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas

e iguais também porque o sangue

que usamos tem pouca tinta".

O novo presidente da Câmara, de modo equívoco e desconcertante, é severino e cavalcanti ao mesmo tempo. Que peso dar à porção severina e à porção cavalcanti que se conjugam, ou antes se toleram, ou se esbatem, em seu nome? O deputado se quer severino. Desde sempre, em sua trajetória parlamentar, se diz situado do lado fraco, o lado cavalgado, da Câmara Federal. Não se trata, esse tipo de severino, de severinos iguais aos de João Cabral, os severinos retirantes, os muitos severinos que, por serem iguais na vida, são iguais também na morte,

"que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte,

de fome um pouco por dia".

Não. São severinos em um outro mundo, onde não há seca nem sinas cruéis como "a de querer arrancar / algum roçado da cinza". São severinos do mundo político, um mundo em princípio de fartura e de oportunidades. Mas, dentro desse mundo, sentem-se a escória. Queixam-se da negligência com que são tratados, tanto pelos manda-chuvas do Poder Executivo quanto pela aristocracia parlamentar, aquela formada pelos deputados de verbo mais fácil, posições políticas mais identificáveis e presença constante nos jornais. A crônica política batizou-os, a esses humilhados e ofendidos do Parlamento, de baixo clero. Assim como há os sem-terra e os sem-teto, eles seriam, ou pretendem ser, no mundo do poder, os sem-poderes. Severino Cavalcanti não só sempre se considerou um deles, como se erigiu no porta-voz de seus lamentos. Nesse sentido, vá lá, é um severino. Mas...

Mas com que armas e que bandeiras se puseram os severinos, o porta-voz de suas queixas à frente, ao assalto da fortaleza defendida pela casta de privilegiados do Parlamento? Era de supor que com propostas e idéias. Do baixo clero, quando aspira ao cardinalato, o mínimo que se espera é que se esmere no latim e se empanturre de teologia. É do máximo bom-tom, mesmo que não seja sincero, que se deixem de lado pleitos que representem vantagens pessoais ou cheirem a privilégios.

Pois Severino Cavalcanti, em sua cavalgada em direção à presidência da Câmara, fez tudo ao contrário. Jogou-se com apetite cavalcanti à captura de um tesouro de benesses – aumento de salários para os deputados, aumento de funcionários a serviço deles, aumento de viagens boca-livre... De quebra, e não menos importante, aumento considerável na possibilidade de mordidas no bolo saboroso do Orçamento. Severino Cavalcanti fez-se de severino, mas apresentou-se a seus pares com um primor de plataforma cavalcanti. Foi assim que ganhou. Os severinos da Câmara estão longe dos severinos de João Cabral, aqueles que só carregam "coisas de não: / fome, sede, privação". Carregam coisas de sim – mandato, funcionários, casa de graça, emendas ao Orçamento. E votaram para ter mais. Protege-os um mestre e guia cuja aparência severina, à semelhança deles, esconde uma alma cavalcanti.

No fundo, no fundo, nada é assim tão surpreendente – o troca-troca de partidos, as barganhas, a prevalência do fisiologismo. Já estamos acostumados. Nem mesmo o desmoralizante desfecho da eleição na Câmara, espécie de haraquiri institucional praticado pela casa, é assim tão surpreendente.

Surpreendente, mesmo, é o cenário dos salões e corredores forrados de propaganda eleitoral dos candidatos – não tanto pela sujeira e deselegância, e mais pelo que indicam. São só 513 eleitores, todos profissionais da política. Os cartazes indicariam: (1) que eles não soubessem que haveria eleição, e precisassem ser lembrados; (2) que não soubessem quais eram os candidatos; (3) que seriam eleitores sujeitos à propaganda contida num cartaz. Em qualquer caso, ficamos com um quadro sombrio de acuidade mental. Coitados. Severino Cavalcanti neles! Eles merecem.

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